sábado, 3 de dezembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 18


2 de Dezembro de 2011


Desvendam-se mais pedras ao longo da margem esquerda do Marthiris.

As paisagens são bem diferentes das dos primeiros dias de viagem. No grande planalto central o rio sagrado manteve a sua riqueza imaculada. Esta vasta região do império é das poucas em que, de tempos a tempos, a chuva pára de cair.

Nesses raros momentos em que se consegue ver o céu que serve de coroa ao império, o povo pára com os seus afazeres e entrega-se a preces e cerimónias junto às sagradas águas do Marthiris. Dedicam-lhe todas as histórias e oferecem-lhe grinaldas de flores serzedhis e de flores banufedes, comuns nestas vastas planícies. Por vezes, ao lado dos tons laranja forte das serzhedis e do amarelo pálido das banufedes, navegam as mais raras e perfeitas flores azuis das montanhas, as que só podem ser colhidas pelas tribos de Ihgrik em pleno coração dos montes Serenos. Até os animais se alteram e, espantados com as tréguas dadas pelos céus, resolvem seguir os peregrinos que se fazem ao Marthiris para lhe prestar homenagem. Dizem que desde o início dos tempos, desde que todos os impérios e todos os céus foram criados, as águas caíram e deram vida e cor às grandes planícies. Deram corpo a todos os afluentes do sagrado Marthiris e forneceram majestade e leveza aos cumes mais altos da grande cordilheira Wawaghan. Contudo, ao longo de um período extenso desse início dos tempos, a água parou de descer dos céus, os campos secaram, os leitos dos grandes rios transformaram-se em pântanos profundos e estéreis, os animais definharam e as populações deixaram de ver o branco manto que cobria de glória todas as montanhas.

A fome e a miséria causaram muito padecimento e os povos reagiram de maneira pouco consciente. Ofertaram ao grande rio sagrado o pouco que ainda tinham para seu próprio sustento. Diziam que de nada lhes serviria pois o seu destino estava irremediavelmente traçado pela doença que alterou os dias e as noites do império, secando-lhe a esperança.

E a história resolveu sonhar outro passado, uma representação alegórica entre as feras do tempo e os homens que ali o enfrentaram, com fé, como se este fosse o último dos demónios.

Fosse pela influência dos seus medos e receios ou pela generosidade e qualidade das oferendas que por três dias foram largadas aos que restava das águas do rio sagrado, os céus voltaram a chorar como dantes.

Os frutos dessa fé desesperada fizeram-se assim sentir.

A protecção pedida ao tempo inclemente, onde o Marthiris foi primeiro intermediário, acabara de chegar!

As ideias do povo passaram a ser diferentes, tal como todos os seus gostos. A sua imensa fé, as existências de todos os passados e, desde esse momento, o presente do território, passaram a ser bem diferentes nesse dia.

E que desvios foram realizados ao longo do caminho, que sensações e que mudanças aconteceram.

Hannibas tem crescido nesta viagem em direcção a Wawaghan. O que falta desse percurso até ao sopé da mãe de todas as montanhas será percorrido a sós, por entre as poeiras e as pedras que o separam dos picos sagrados.

Os guerreiros veteranos preparam Hannibas, vestem o futuro rei, facultam-lhe o armamento necessário e os tratamentos ritualizados para o caminho que terá de percorrer. Carregará os utensílios de dois soldados às costas mas não lhe serão oferecidos mantimentos. Um pequeno cantil de água fervida é o único privilégio permitido. Seguirá a pé, descalço, sem montada e com o peso substancial que terá de conseguir transportar até ao acampamento junto aos pés dos majestosos picos de Wawaghan.

A chuva cai, miudinha, tão leve que desenha pequenos lençóis transparentes, quase invisíveis. Descem, depois, suaves e húmidos, colando-se aos corpos dos viajantes.

Hannibas tem três dias para enfrentar os primeiros dos seus demónios. No final dessa tarefa, dessa ritualizada mini-epopeia, acontecerá a primeira de suas muitas transformações. Tal como os primeiros povos de Chover, sentirá as ideias desses peregrinos, sofrerá com os mesmos medos e será confrontado com os mesmos demónios que quase lhes secaram a esperança. Novos momentos lhes serão comunicados, outros mais antigos lhes surgirão e revisitará locais já esquecidos. Percorrerá os espaços onde os seus dramas acontecerão e tudo será realizado sem que lhe possa ser fornecido qualquer auxílio ou informação.

Não viverá enquanto rei serpente se não conseguir vencer os pesadelos que lhe surgirão neste ciclo de viagem. As ideias de Hannibas passarão a ser diferentes como diferentes passarão a ser os seus gostos, a sua coragem e o perfil da sua jovem existência.

Quando a chuva pára

O Marthiris fica colorido de esperança

Grinaldas de serzedhis

De banufedes

Abençoam essas águas

E as pétalas azuis da rainha das montanhas


Para que os céus nunca se esqueçam de chorar

De alegria

Para honrar a glória do império

Dia após dia


Todos os demónios serão derrotados

Do passado ressurgirão grandes memórias

E do futuro virão muitos segredos


Todos os perfis do rei serpente

Serão pintados de coragem

E Hannibas renascerá

Como peregrino dedicado

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