sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

MOMENTOS DOIS - 30




26 de Janeiro de 2012

Lembra-te das palavras e dos pássaros e das armas que chegaram dos céus durante a madrugada. Deves descansar depois no final da viagem.
As serpentes passeiam pelo teu corpo, fornecem-te o sangue e a força ímpar que habita em todos os soberanos de Chover. Não grites, não te movas, mantém-te tranquilo enquanto contas os segredos às serpentes. Recorda as tuas vidas passadas, todos os seus finais são relembrados para que depois os voltes a esquecer.
Das neblinas surgirá um imenso lago de água fresca que te seduzirá como um tesouro assim como todas as perguntas que terás de responder. Deves manter-te imóvel ao longo desse inquérito e deves responder antes de matares a tua sede. Não cedas à tentação de beber água do lago antes de dares resposta às questões colocadas pois grande infortúnio resultará para o teu reino se tal acontecer.
As serpentes percorrem cada parte do teu corpo, tapam-te até que só a cabeça fica descoberta. Os corpos de Gorhagahrjani e Leónidas são-te oferecidos de presente pela coragem que tens demonstrado.
Resiste à sede e responde às questões antes de matares essa inimiga, pois grande infortúnio resultará para o teu reino se tal não acontecer. As serpentes que te cobrem colocam-te ao lado dos teus irmãos. Desse modo permanecerão até que Lakis vos visite. Ficará espantado por vos encontrar assim deitados, lado a lado, estando tu, Hannibas, já coberto de serpentes.
Responderás, nesse momento, às questões que a voz do lago te colocará, essa voz que todos escutam mas que parece não ter dono, essa voz que diz ter assassinado os teus irmãos apenas porque eles, ao contrário de ti, beberam a água do lago antes de lhe transmitirem as respostas.
- Pai, preciso da tua ajuda, vem comigo colocar-te como um peregrino sobre estas pedras que aqui se encontram na margem do lago. Pai, fornece-me a força e a sabedoria necessárias para responder correctamente a todas as questões.
E tal como a voz misteriosa de Hannibas lhe indicara, uma outra voz, bem mais audível e autoritária, faz as primeiras perguntas.
- O que pode ser mais veloz do que o vento e os ciclones? O que pode cobrir a terra inteira?
E Hannibas responde com coragem às primeiras questões:
- O pensamento é mais veloz do que o vento e os ciclones, e a escuridão é bem capaz de cobrir a terra inteira.
E a voz continua a consultar:
- Dá-me um exemplo de espaço, se fores capaz.
Hannibas responde de novo:
- As minhas mãos unidas como uma só.
E a voz pergunta:
- Dá-me um exemplo de sofrimento, se fores capaz.
Hannibas volta a responder:
- A ignorância é um exemplo de sofrimento.
E a voz insiste:
- Dá-me um exemplo de veneno, se fores capaz.
Hannibas responde:
- O desejo é um exemplo de veneno.
E a voz volta a insistir:
- Dá-me agora um exemplo de derrota, se fores capaz.
De novo, Hannibas lhe responde:
- A vitória! A vitória é um exemplo de derrota.
E mais uma pergunta surge no ar:
- E o que surgiu primeiro antes de todas as coisas? Terá sido o dia ou a noite?
Ao que o jovem príncipe responde:
- O dia, o dia surgiu antes da noite mas apenas por um breve e fugaz dia.
E outra pergunta surge e avança:
- Qual é a maior de todas as causas do Mundo?
Hannibas responde:
- O Amor! O Amor é a maior de todas as causas
E mais uma questão lhe é colocada:
- Qual é o teu oposto?
Com muita calma, Hannibas responde:
- Eu próprio sou o meu oposto.
E outra pergunta vem logo a seguir:
- O que é a loucura?
O futuro rei serpente responde:
- A loucura existe nos nossos caminhos esquecidos.
E mais uma questão se levanta:
- E as revoltas? Porque se revoltam os homens, afinal?
Sem pressas, Hannibas dá a resposta:
- Para encontrar o belo, o raro e a beleza, quer no tempo de vida quer no da morte.
Outra pergunta é feita com rapidez:
- E o que é inevitável para cada um de nós?
Hannibas reflecte e responde:
- A felicidade!
E a última pergunta é anunciada:
- E qual é a maior das maravilhas?
Sem hesitar, o jovem responde:
- Cada vez que a morte nos toca e nós vivemos, sobrevivemos, como se fossemos imortais! Essa é a maior das maravilhas.
Então a voz do lago deu ordens para que Gorhagahrjani e Leónidas ressuscitassem. Quando Hannibas olhou para a pedra onde julgava que Lakis se tinha colocado, reparou que esta estava vazia, reparou que esta esteve vazia durante todo o tempo que durou a prova. E Hannibas ficou perplexo, pensou e não quis acreditar no que acabara de descobrir. Nesse exacto momento lançou uma questão à voz que provinha do lago.
- Quem és tu, afinal, a quem tantas perguntas respondi?
E a voz do lago responde num tom mais harmonioso.
- Acabaste de descobrir a resposta a essa questão, meu bondoso Hannibas. Eu sou Lakis, teu pai! Passei a ser a constância, a justiça e a ordem de todas as coisas.
A surpresa faz com que Hannibas não pare de falar.
- E assumiste aqui, tão longe de tudo e de todos, a forma de um lago?
Lakis responde com um sorriso na voz:
- Eu agora sou todas as formas, meu filho, e estou bastante satisfeito. Fico contente por poder ver-te crescer. Chegou o momento de te conceder a realização de um desejo. Escolhe bem, sê sensato, não te esqueças que o teu corpo se encontra coberto de serpentes e que a montanha se voltou a fechar.
Hannibas insiste:
- Quer isso dizer que a minha viagem está perto do fim? Um dia apenas, um só, é o que me falta para o fim desta jornada. Mais um dia em que voarei oculto, esquecido, irreconhecível no meio de tantas outras aves peregrinas. Será que me devo camuflar com outras vestes que não estas?
Lakis fornece outra resposta:
- Deves escolher um disfarce das cores do teu mais profundo desejo, um que te permita esconderes-te dos teus poderosos inimigos, um disfarce tão perfeito que nem eu próprio te conseguirei distinguir. Agora já podes beber e matar a tua sede.
Este é o momento em que os três irmãos mais velhos da Hglira da casa Kostarinadis bebem a água refrescante, pura e cristalina do grande lago da mãe-montanha.
Porque se reinventa este poema? Porque procuram os jogadores deste Benzerinagui alcançar tamanha glória com tão grande afinco, arte e dedicação? Para que em todas as holoesferas o coração dos homens continue a receber partes importantes da primeira história, mesmo que essa tarefa pareça impossível.
Este é já um dos mais disputados Benzerinaguis e um dos mais perigosos também. Por todas as galáxias do universo as histórias e epopeias são escutadas e em todos aqueles que as escutam crescem dúvidas e nascem razões para procurarem os seus próprios caminhos. Esses serão os espectadores-leitores que mais contribuirão para o desenvolvimento destes poemas.
- Para onde vou agora? Ainda não sei. Tenho o coberto de serpentes e não sei como aqui cheguei. Quem é o autor da minha história? Chego a duvidar da minha própria existência. Chego a duvidar da existência de meu pai ou até se aqui me encontro, se sou real ou ficção. Duvido da minha existência e hesito, como se fosse apenas um actor nesta história em que viajo. Sim, sou eu que escrevo, mas muito daquilo que verdadeiramente acontece não acaba aqui escrito. Muitos dos meus pensamentos acabam perdidos, soltos como o vento, como os ciclones, como as gotas de água fresca das cascatas de Wawaghan. Sou eu que me invento e sou eu que invento esta viagem. Sou eu quem pinta estas paisagens, as personagens, os tempos e o estranho enredo do poema. Prefiro parar de pensar! Era bem melhor se assim acontecesse pois, em boa verdade, nada do que aqui se passa é inventado por mim. Esta epopeia tem vários criadores. Larniki inventou-me e foi por mim inventado. Wawaghan inventou-me e foi por mim inventada, tal como todas as lagoas onde me vim conhecer. O Marthiris inventou-me e foi por mim inventado, tal como a água que há bem pouco fui beber. Esta epopeia inventou-me e foi por mim inventada, como estas palavras que me fazem aprender.
- Hannibas! Estava à tua procura. Tenho frio! Preciso que salves o grande império de Chover! Preciso que assumas, corajosamente e de uma vez por todas a tua condição de rei-serpente. O que me dizes Hannibas? Que tens tu, afinal, para nos contar? Que histórias tens tu para nos revelar?
O jovem princípe procura as respostas para as questões colocadas pela sua própria imagem reflectida nas águas da lagoa.
- Eu não sei! Ainda desconheço parte importante da minha história. Faltam-me tantas pedras para descobrir. Sou vida e estou vivo. Estes são os dias finais da minha juventude. Esperam-me os sabores sublimes das mais doces iguarias mas também me esperam as cores baças da minha pele gasta e os lagos de águas sujas e barrentas. Escutarei lamentos, choros e gritos desesperados dos que pedem o meu auxílio.
- Também eu os escuto meu filho!
E Hannibas pergunta:
- O que faria se fosse eu, meu pai?
E Lakis responde:
- De noite durmo e de manhã acordo, e espero…

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

MOMENTOS DOIS - 29



17 de Janeiro de 2012

- Nas colinas os segredos continuam bem guardados e ainda te faltam leituras muito importantes. És tão jovem, ainda tão jovem, meu bondoso Hannibas. Não te deixes assustar pelo desconhecido. Usa as tuas asas, voa no interior da neblina, voa através do cerrado nevoeiro do Marthiris. Voa na companhia das falésias, voa por cima de todas as muralhas. Recordarás esta viagem para sempre, recordarás os medos sentidos, os cansaços, as dores e esta doença vermelha que te ameaça, esta doença negra que te procura marcar e te sufoca. Coragem Hannibas, sente a força que em ti habita, sobe ao que te falta percorrer nesta jornada, sobe ao topo da montanha-mãe onde irás fazer parte das suas cores. Os pássaros peregrinos esperam por ti, tu serás a luz e a sabedoria dos seus corações. Recordarás aquele que para sempre te deixou, aquele que te abraçou e entendeu noutro momento. As tuas asas já lhe pertenceram, como antes a Zaffiris e a Rakis. Carregas às costas essa alegria, essa esperança, essa coragem, e com elas derrotarás as tempestades mais geladas. Como bailarina vim oferecer-te esta dança. Com o meu corpo gravar-te-ei para toda a eternidade esta lembrança, dar-te-ei de beber cada letra, dar-te-ei de comer cada palavra para que possas com elas semear as histórias mais antigas. As minhas lágrimas irão acordar-te, como acordam os riachos que galgam as veredas em cascatas. As tuas asas serão o teu poder, serão as tuas histórias, serão as palavras que o deus sol aquecerá. Elas te farão chegar até este lugar onde eu habito sempre que o desejares. Depois da viagem, desta luminosa evidência, conhecerás o lugar onde as rochas e os cometas se esconderam e reconhecerás o lugar onde eu habito, meu amor. Terás a vida inteira para me visitar.

Soldados colocam-se frente a frente
No campo de batalha
Símbolos intransponíveis de esperança e coragem
A morte escondida no centro dos combates
O dragão negro avança sorrateiro
Escreve ordens invisíveis nas pedras
Conta mentiras em forma de segredo

Mas a menina princesa acredita no coração do herói
O herói acredita no coração da princesa
Onde a montanha o guarda
Onde o tempo não existe
É apenas ilusão

Aqui chegam os peregrinos das nuvens
Desenham círculos perfeitos
Bailando nos céus gelados de Wawaghan
Onde o tempo não existe
É apenas ilusão

Hannibas acorda
O corpo azul coberto de cinzas
Wawaghan inteira coberta de cinzas
E o tempo
Que não tem fim
Não tem princípio
Que se esquece de acontecer
Acorda com Hannibas
Para enfrentar o poder do dragão

A primeira palavra
De todas as histórias
É recordada

O coração de Hannibas iluminou-se
O fogo intenso que se gerou
Vestiu o universo com as cores do sangue
A batalha com as cores do sangue
Asas poderosas
Correntes luminosas
Infinitas
Confundem-se com a cor do vazio
Com os espaços galácticos sustentados pela cor desse vazio
Onde o tempo não existe
É apenas ilusão

Mãos azuis brincam com os bafos quentes do dragão
Misturam-no com as setas
Diamantes despedaçados
Pedaços de asas brancas
Indestrutíveis


Tudo treme
A energia vermelha desaparece
Transformada num silencioso branco infinito
Onde o tempo não existe
É apenas ilusão

É neste lugar que eu habito
Meu amor
E terás a vida inteira para me visitar



20 de Janeiro de 2012

A montanha volta a fechar-se.
Os segredos que as pedras arquivam aguardam pelos peregrinos com sagrada paciência. Afinal, o tempo não existe, é apenas ilusão. Os sonhos aquecem essa ilusão que veste o tempo. Hannibas recupera os sentidos, acorda para o que lhe resta da jornada. As asas são novamente visíveis, enormes. Protegeram o corpo azul do futuro rei-serpente durante o combate e enquanto o silencioso branco infinito o alimentou. Outra gloriosa etapa se escreverá assim que o príncipe se levantar e retomar o caminho em direcção ao topo da mãe-montanha. Os pássaros aguardam Hannibas. A restante viagem será realizada pelos ares, pairando nas nuvens na companhia das aves peregrinas. Elas conhecem muitas das histórias que se encontram arquivadas nas pedras da mãe-montanha e voltam sempre aos locais onde se esconderam.
Na mesa de jogo o chá acabou de ser servido. Tsu Lee Khan afaga a enorme cabeça do dragão que permanece tranquilo junto às pernas do Mestre. A suposta criação das gémeas Öllin parece rir-se das criadoras como um feitiço que se virou contra o próprio feiticeiro. A corrente foi quebrada e nada mais o une às jogadoras.
Olhos de derrota vertem lágrimas amargas no aveludado tampo verde da mesa de jogo. Este Benzerinagui acabou apenas para uma das gémeas. Dos olhos de ambas saem gotas salgadas de quem não consegue esconder a raiva amarga que lhes vai no coração. Foi este o desfecho ditado pelos espectadores leitores do Benzerinagui. Assim acabou, precocemente, o império vitorioso das Öllin. Nas holoesferas espalhadas pelas mais distantes galáxias se formou o resultado.
Os jogadores desta mesa são fortes, muito mais fortes do que alguma vez imaginaram as gémeas escritoras. Acabaram por ser vítimas da sua insensatez.
Não há tempo para despedidas, não há tempo para palavras, não há tempo.
O topo da mais alta montanha é o destino que se encontra escrito a castanho quente, perfumado, no rectângulo cor de musgo.
Avançar, antecipar as jogadas dos adversários, permanecer fiel a este princípio de que as histórias, todas as histórias, contêm parte importante da primeira. Se assim acontecer, se assim continuar a acontecer, nada de mal sucederá a Hannibas.
Tenho à minha frente o rectângulo negro, o quinto cartão rectangular que esconde o sentimento do herói. Os pássaros acompanham-no. De asas brancas bem abertas, plana por cima do gigantesco planalto gelado onde as estátuas cor-de-bronze foram semeadas. A fome desapareceu, a sede e o cansaço desapareceram, as recordações dos instantes antes do adormecimento desapareceram. As feridas e o medo de falhar também desapareceram.
O império aguarda pelos feitos nobres do jovem príncipe. A glória de Hannibas fará com que Chover se revigore, cresça e se torne modelo para todos os impérios vizinhos. Hannibas só deseja voar, só deseja escutar as histórias que os seus companheiros de viagem lhe vão contando. Outros heróis venceram a morte, venceram o firmamento, o rio, as neblinas, os desertos e as escarpas geladas. Venceram tempestades ciclónicas, distâncias, sombras e até a solidão.
- Sinto o poder revigorante das palavras. Estes peregrinos voadores sabem contá-las com a mesma magia de meu tio. Nelas consigo encontrar muitos dos segredos da minha vida, consigo entender quem sou, quem ainda não conheci, como sobrevivi, quem me ajudou a crescer e como me transformei. Enfrentei parte da ira da mãe-montanha, já venci tempestades ciclónicas, descobri as suas escultoras, venci distâncias e venci as sombras. Assim aconteceu porque em mim habita esta força imensa, este poder enorme contido na sagrada marca azul que nos pertence. O amor existe nesta montanha, como o vento que aqui sopra, se espalha, que vem ter connosco e nos altera. Consegui recordar o teu rosto, a tua voz e o teu perfume. Esta história devolveu-me os teus cabelos negros, os teus olhos e o teu sorriso de menina. Transformado que fui por ti em firmamento, abalo feliz em direcção ao topo da montanha-mãe, abalo feliz por me teres mostrado este lugar onde habitas, a mim e só a mim, minha amiga, meu amor. No topo da montanha sei o que irei encontrar. No topo da montanha passarei a ser o guia e não mais o peregrino seguidor. Deixarei de avançar sem destino no meio das mentiras, das neblinas, resguardado neste casulo construído em meu redor.
A palavra bordada no rectângulo negro é a do sentimento. Ficou branca como as neves eternas do topo da mãe-montanha. Branca como a coragem, como a luz da página iluminada onde se gravou a primeira das histórias. Branca como o primeiro poema, como o primeiro sonho, como o primeiro beijo de amor dos primeiros amantes. Branca como o primeiro de nossos beijos, como as nossas asas, como o sal que faz vibrar, corajosos, os nossos corações. Branca como a cor do dragão aliado, do dragão amigo, afável, que respeitou a coragem do vencedor. Branca como a nuvem que nos guia, como a luz que esconde na sua brancura todas as cores do firmamento. O meu destino servirá para recordar a importância dos silêncios, servirá para aprender a escutar e reaprender a importância de saber ouvir passar o tempo.
O tempo não existe, é uma ilusão.
O tempo molda-nos, tal como o infinito. Passa a ser o aqui e o agora, nunca o amanhã.
O dragão invisível abandonou a protecção de Tsu Lee Khan. O mestre não serviu o chá Kalatziki a uma das Öllin assim como ao jogador-escritor do topo oeste desta mesa.
Negra é a cor do sentimento, vermelhas as cores que o construíram. Mas Hannibas conseguiu tingir de branco as escamas do dragão. Conseguiu tingir de branco as letras do sentimento bordadas no rectângulo.
- Benzerinagui, Benzerinagui!
Aguardamos com expectativa as palavras que todos nos dirão.

sábado, 14 de janeiro de 2012

MOMENTOS DOIS - 28


8 de Janeiro de 2012

Em todas as histórias enfrentamos inimigos invisíveis, percorremos milhares de etapas, apertamos os nossos corpos de combatentes uns contra os outros e atravessamos a vau a correnteza dos rios. Muitos morrem como ratos vítimas das emboscadas que os impedem de desertar. Colocam-nos armas nas mãos e avançamos para a frente das batalhas onde corremos uns contra os outros tendo a morte como única aliada, essa donzela gelada a quem poucos conseguem escapar. Rastejamos nas lamas fazendo dos corpos fronteira, símbolos intransponíveis de esperança e coragem. Fazemos do nosso corpo um corpo de herói e assim nos alimentamos de esperança nesses campos de batalhas mantendo vivas todas as histórias e todos os tempos dessas lutas. A morte esconde-se contente no centro dos combates, avança às arrecuas enganando tudo e todos, espalhando o seu odor noite e dia sem parar. Os heróis enfrentam-se, recordam tudo o que lhes ensinaram os avós, abrigados pelas sombras, pela escuridão, pela neblina. Matam-se uns aos outros, enganam-se utilizando tácticas brutais em que o tempo é o mais precioso elemento. Os covis que escavaram para se protegerem uns dos outros são cada vez mais fundos, escuros e sombrios. O dragão negro avança sorrateiro por entre os cadáveres dos combatentes de cada exército. A importância dos silêncios entre os espaços onde se preparam mais combates é vital. Do céu cai a recordação de cada morte como história perdida no interior do coração das pedras. Traições emergem na luta pela sobrevivência em ambos os lados da barricada. O dragão negro entretém-se a fornecer sonhos impossíveis aos combatentes mas isso não os impede de viverem todos os instantes como se fosse o último momento das suas histórias. O perigo é cada vez maior, os guerreiros são colocados novamente nos campos de batalha, avançam camuflados no meio dos companheiros, comprimidos uns contra os outros nos lamaçais, nas selvas, nos desertos. Contam-se mentiras em forma de segredos, juram-se palavras e actos impossíveis, jogam-se os dados do destino como pequenas peças iluminadas que acabam quase sempre esmagadas pelo imenso poder do nevoeiro. Na longa jornada deste herói, aparece uma menina-princesa para lhe contar a verdadeira história. O herói, cego e cansado, perde a princesa de vista, perde os amigos que invejam o seu amor, perde o amor da princesa e dos amigos, perde a esperança ao matar sem descanso os inimigos no campo das batalhas e volta a ser a ilha que sempre foi. Mas a menina-princesa acredita no coração cansado do seu herói e o herói volta a sentir o calor infinito do coração da sua menina-princesa. Juntos mudarão o tamanho do Mundo e o destino desta história para se conseguirem reencontrar.
- Devia ficar por aqui. Apetece-me destruir todas estas grutas e tentar cavalgar nas costas deste dragão.
Os cavaleiros de Hannibas chegaram às margens junto aos lagos de Wawaghan. Começam a montar o acampamento e preparam a sua chegada. A grande mãe-montanha irá continuar a guardá-lo até que o futuro rei serpente encontre a parte mais importante da sua história.


10 de Janeiro de 2012

Ouvir passar o tempo.
Lentamente, corta os pedaços da existência ao ritmo compassado e seguro dos elementos.
O tempo não existe, é uma ilusão.
- Aqui escondido no topo da montanha, o tempo espreguiça-se de outra forma e com outra vontade. Nas profundezas do oceano em que viajamos, a sua dimensão é outra, tal como nas grandes planícies por onde serpenteia o Marthiris, ou junto ao sopé das mais sagradas montanhas de Wawaghan onde me aguardam. Tenho muito para ler, imensos caminhos para percorrer, muitas histórias para recordar. Estas estátuas de bronze, pedras cinzeladas em segredo nestes vales gelados, e a ilusão de que o tempo ainda me pertence, são os meus companheiros de viagem. O tio tinha razão. Assim como as suas palavras não pareciam fazer qualquer sentido, assim como a surpresa morava em cada uma das suas frases, tudo nestes dias se conjugou para trazer a luz da compreensão ao que me ensinara. Por debaixo da fina capa que envolve a realidade de todas as histórias, encontra-se gravada a história comum que as unifica. Nenhuma história existe sem segredos, nenhuma viagem acontece sem tempestades tenebrosas, nenhum sonho se constrói sem que nele se semeiem pesadelos e nenhuma pedra é arquivada sem que no final se desintegre em poeira e esquecimento como o próprio rei serpente de Chover. Caminho na companhia dos pássaros. Aqui chegaram estes peregrinos das nuvens para me iluminarem a jornada. Desenham nos ares gelados círculos perfeitos, quase infinitos. A sua presença tranquiliza-me enquanto leio as pedras e as histórias que arquivam. Este vale gelado assumiu a proporção do maior de todos os desertos. Caminho sem me alimentar e sem saber onde conseguirei obter mantimento. As forças começam-me a abandonar. Gostava de ser corajoso, da abandonar esta paisagem e fazer companhia aos pássaros que continuam a riscar círculos perfeitos nos céus gelados de Wawaghan. Larniki sabe como contar as grandes histórias. Sabe adocicá-las, sabe semear as dúvidas e sabe alimentar a curiosidade a quem as ensina. O rosto sorridente do contador de histórias voltou para me acalmar. Não tenho fome, não sinto as minhas pernas, não sinto os braços cansados, não sinto as minhas asas e não as consigo bater, não sinto o corpo, não sinto o bater do coração, os meus olhos fecham-se, a minha voz desliga-se, as luzes das estrelas do céu de Chover desligam-se, os pássaros peregrinos desaparecem, o tempo não existe, é uma ilusão.
Hannibas tombou no chão empoeirado do grande vale de Wawaghan. Não leu metade das histórias que aqui se encontram. O cansaço tomou conta do jovem príncipe e o ar rarefeito da montanha cumpriu o seu papel. Histórias sombrias acerca de batalhas sangrentas, de guerreiros e combatentes cruéis, de heróis que se camuflaram no meio de mortos, de lamas e de poeiras, que serviam mentiras e traições em forma de segredos, aparecem no pesadelo do futuro rei serpente de Chover. E um dragão negro invade este descanso forçado. Um gigantesco corpo negro volta a segredar ordens invisíveis, volta a contar mentiras e a avançar camuflado pelo ilimitado poder do nevoeiro. Semeia dúvidas e mais dúvidas ao Hannibas adormecido. Os seus dentes são da cor do sangue, o mesmo sangue que lhe mancha o longo corpo negro da cauda à cabeça, o mesmo sangue com que escreve no chão das batalhas o nome de todos os mortos, o mesmo sangue com que rabisca o nome de Lakis junto ao rosto do príncipe fazendo-o estremecer.


13 de Janeiro de 2012

Hannibas acorda com a visão da cabeça do gigante transformada num vulcão enlouquecido.
O pescoço é agora uma torre que se ergue em direcção ao céu, o enorme focinho é um cone incandescente por onde se vomitam labaredas, lavas e fumos densos que cobrem toda a cordilheira.
O corpo azul de Hannibas encontra-se coberto de cinzas.
Fecha os olhos, ergue os braços em direcção aos céus invocando o poder sagrado da mãe-montanha que tudo protege. Da sua boca saem as palavras da primeira de todas as histórias.
- O tempo não tem fim nem tem início, tal como o Marthiris, a água que o serve, a chuva dedicada, as neves eternas onde renasce e onde cumpre mais uma das etapas. Atravessar os oceanos sem ruído, admirar as multidões e os peregrinos. Saltitar de cume em cume, por eles avançar, neles crescer, reflectir, para finalmente me transformar. E a cinza carregada que o dragão vai expelindo deixará de tapar o céu e de cobrir a montanha. Chegou o momento de perpetuar esta aventura e plantar aqui a raiz deste momento.
O corpo franzino de Hannibas cresceu até alcançar o tamanho grandioso de Wawaghan. As asas invisíveis cresceram muito acima das nuvens, muito para além das fronteiras do império de Chover. O jovem príncipe entendeu a razão primeira da sua existência e o seu coração passou a compreender o verdadeiro poder da marca azul que nele habita. A maior de todas as batalhas vai ter o seu início.
Neste momento, neste lugar improvável, Hannibas enfrentará o poder do dragão. A glória ou o fantasma de todos os esquecimentos esperam por ele no final do combate. As histórias que o fizeram crescer transformaram-no neste guerreiro corajoso que enfrenta despido o poderoso adversário. As histórias e as palavras dessas histórias serão as suas únicas armas.
Os dois adversários continuam a crescer, ganham dimensões que vão para lá das do império, para lá das do continente onde o império se construiu, para lá do planeta onde o continente do império se construiu, para lá do sistema solar onde os irmãos do planeta se reúnem. Os dois adversários ganharam a dimensão quase infinita da galáxia, atravessam os espaços vazios que alimentam as estrelas, os cometas e as próprias galáxias. A primeira fase da batalha vai começar.
O dragão de fogo confunde-se com a cor do vazio que sustenta os espaços entre as galáxias. Hannibas invoca as energias contidas nas lamas iniciais, recorda as palavras do bisavô de todos os tempos, recorda o tempo em que ele foi o bisavô de todos os tempos e em que foi o grão infinitésimo de unidade destruído para dar origem à escrita do primeiro dos poemas. Recorda a primeira palavra da primeira história e um fogo intenso começa a arder no seu peito azul como nessa primeira vez. O corpo do dragão foi atingido violentamente pelo fogo intenso que nasceu no coração do futuro rei serpente e iluminou-se de vermelho. A batalha veste-se das cores do sangue, o universo inteiro veste-se com as cores do sangue, os dois guerreiros cavalgam nos fluxos de energia que foram gerados e tentam antecipar os movimentos e as estratégias para o próximo ataque.
Todo o que agora existe é esta energia vermelha, luminosa e infinita onde estão camuflados os dois guerreiros. A força do dragão foi afectada por este primeiro ataque de Hannibas. As asas invisíveis do herói transportam-no até ao lugar mais afastado destas nuvens de energia onde as poderosas forças do dragão se revigoram. Com um único bater de asas, Hannibas destrói a corrente que alimentava a alma do dragão, torna-o visível e catapulta-o para junto de si. Estão agora frente-a-frente, preparados para a luta corpo-a-corpo, sem estratégias de invisibilidade ou manobras menos dignas.
O dragão hesita um pequeníssimo instante, propositadamente, e Hannibas acredita que pode arriscar mais um ataque ao corpo luminoso do animal. Ao levantar as enormes asas brancas sobre a cabeça do dragão, deixou de o ver, deixou de perceber para onde se deslocara o adversário. A asa direita foi violentamente cortada pela metade com um golpe executado pela cauda escamosa do animal que por pouco não lhe acertou na cabeça. O combate acontece com uma rapidez indescritível, acontece com a mesma rapidez com que as penas que deixaram de pertencer à asa do jovem príncipe se transformaram em velozes cometas de luz, setas de diamantes iluminados que voam em direcção à cabeça do dragão que reage instintivamente e as despedaça com um bafo tão quente como as lamas iniciais.
Hannibas junta nas mãos azuis os restos das setas destruídas, pedaços de asas brancas, com o bafo quente que saiu da boca do animal. Tudo treme, as mãos tremem-lhe, o corpo azul treme, o espaço entre todas as coisas treme, o adversário treme como nunca tremera antes, o tempo treme e tudo o que era luz e energia vermelha transforma-se num silencioso branco infinito.
O infinito passou a ser aqui e agora, nunca o amanhã.
- Entendes agora Hannibas? Reconheces-me? Eu sou a dimensão iluminada onde a primeira de todas as histórias se contou. Sou todos os silêncios e todos os símbolos de que se alimentam os silêncios. Sou o lugar onde irão nascer todas as histórias, a folha onde nascerão todos os sorrisos, todas as lágrimas e as viagens de todos os poemas. Sou parte desta história, tal como tu és parte desta história. As tuas asas são as minhas asas, são as asas de Lakis, de Zaffiris e de Rakis. Maior será a tua glória quanto maior for a tua capacidade de te saberes erguer depois de cada queda. Nasceste no seio de uma família de guerreiros, serás o quarto rei serpente de Chover, rei dos desertos, das montanhas e dos vales, rei dos pântanos, das planícies, dos rios, dos mares e oceanos. Serás o rei dos glaciares escarpados, dos planetas, das galáxias e dos universos e terás de os saber proteger. Serpentearás como o Marthiris, voarás como o mais ágil dos pássaros peregrinos e saberás como transformar todas as histórias.
O infinito passou a ser aqui e agora, nunca o amanhã.
Tudo treme, as mãos tremem-lhe, o corpo azul treme e tudo o que era branco, silencioso e infinito volta de novo a ser o chão empoeirado do grande vale de estátuas de Wawaghan onde Hannibas caiu de cansaço.
Uma terna mão azul toca no seu rosto adormecido, passeia pelas sobrancelhas do jovem príncipe, dança pela sua testa, desliza pela cabeça até aos seus lábios e pescoço.
- Aqui vais encontrar aquela que ainda não conheces, a tua maior amiga, aquela cujo coração te pertence. Aqui vieste como peregrino para me conhecer. Eu sou aquela que a quem os ventos chamam Sheridan, a menina princesa do teu coração.