24
de Fevereiro de 2012
Restam as palavras.
Quando tudo se despedir, tal como as pedras, ficam
as palavras.
As que contam esta história serão atiradas aos
ventos antes de alcançar o destino final. Como tantas outras, irão conversar
com as memórias de todos os que descreveram. São heroínas despojadas de corpo
físico capazes das mais inacreditáveis proezas.
Hannibas decifra as últimas palavras da primeira
história. O seu caminho, longo caminho apesar de tão jovem, trouxe-lhe luz e
sabedoria. Nu, tal como as palavras que foi bebendo, despede-se de quem já foi
para abraçar os últimos degraus desta jornada.
Esta viagem não é só sua, esta história não é só
sua.
Do seu agir e do seu pensar dependem todas as
histórias.
O futuro rei-serpente viajou, viu onde se arquivaram
partes importantes da primeira história, pecou, entendeu o que era visível e
invisível em todas as coisas. Entendeu os segredos importantes da sua vida,
aqui, nesta dimensão branca, distante e gelada da qual passou a fazer parte.
Vai, brevemente, seguir caminho até ao mosteiro de
Zharkhanis, essa construção mítica que regressou à sua lembrança através das
memórias resgatadas às histórias destas pedras.
As sete chaves necessárias para abrir o cofre de
bronze estavam escondidas no seu coração.
A primeira, a chave da caridade e do amor imortal,
foi encontrada pelo jovem príncipe quando escutou as palavras dos idosos
habitantes da montanha, ascetas cegos que o receberam na primeira etapa da
viagem. Hannibas foi identificado como um anjo sem rosto. Escutou-os,
facultou-lhes o seu tempo, a sua atenção e admiração. Sentiu-os e relembrou as
palavras de Lakis ao deixar-se tocar por esses sábios que o iam dessa forma
descobrindo. Deu-se a conhecer, percebeu qual o peso da monotonia e das
rotinas, percebeu que dessas qualidades se alimentam e fortificam os alicerces
poderosos da mãe montanha. A sua história passou a ser contada pelos cegos
ascetas porque lhes facultou a alma, as suas vontades e os seus sonhos.
Hannibas foi, nesse momento, a pedra invisível que se descobriu.
A segunda, a chave da harmonia, encontrou-a ao
abraçar a condição sagrada do grande rio da vida. No fundo da lagoa onde se
encontravam as lágrimas cristalizadas de Wawaghan, aprendeu a parar o tempo, a
parar o mundo e a compreender a solidão. Nada mais lhe pertencia e tudo lhe
pertencia. A cordilheira sagrada passou a existir em Hannibas tal como todas as
suas histórias. A água e a sua cor azul transformaram definitivamente o corpo
do jovem príncipe e o tempo deixou de existir, é apenas ilusão.
A terceira chave, a da paciência suave, foi-lhe
doada por Larniki em forma de asas brancas, imaculadas. O infinito passou a ser
o aqui e agora, nunca o amanhã. Hannibas interpretou correctamente esse
presente e usou-o para atravessar o rio dezenas de vezes antes de seguir o
caminho indicado pelas flores iluminadas. Percebeu que a viagem, grande parte
da viagem, é acerca da vida, dessa eterna luta, e aprendeu a bater as asas com
orgulho fazendo brilhar a escuridão.
A quarta chave, a da verdade, da indiferença ao
prazer e à dor, foi adquirida por Hannibas ao recordar e reconhecer o lugar
onde se abrigam todos os seus pesadelos. Essa chave foi difícil de alcançar
pois o grande dragão negro vestiu-se de uma ferocidade nunca vista e atacou
cobardemente o jovem príncipe. Atacou sem avisar e Hannibas deixou de saber
qual o seu lugar neste mundo. Perdeu quase toda a esperança. Nesse dia não se
escreveu nenhum poema, celebrou-se o futuro de todas as histórias e
libertaram-se todos os filhos e todas as mulheres dos que foram mortos pelo
dragão assassino.
A quinta chave, a da energia indómita, nasceu no seu
coração quando, corajoso, levantou voo e abraçou inteira a madrugada. Desejou
sentir-se miserável, despojado de títulos e riquezas, aprendeu a saltar de cume
em cume e, mais importante, aprendeu a dominar definitivamente o dom ímpar de
voar. As pedras fizeram-no grande. Os dias e as noites passaram a ser seus
aliados. As pedras da mãe-montanha e a mãe-montanha passaram a ser suas
aliadas. Todas as histórias e todos os poemas são seus aliados. Hannibas
compreendeu a correcta dimensão do seu valor.
A sexta chave, a chave da porta dourada que leva até
ao reino eterno da contemplação sem fim, nasceu no seu coração ao caminhar na
companhia dos pássaros, peregrinos das nuvens. Com eles, Hannibas recordou a
primeira palavra da primeira de todas as histórias. Um fogo intenso aqueceu-lhe
o peito como nesse longínquo instante inicial. Foi um grão infinitésimo de
energia que deu origem à escrita do primeiro dos poemas. Hannibas é agora a luz
e a sabedoria que vive dentro desses peregrinos das nuvens. Hannibas sente,
como ninguém, o poder revigorante das palavras da primeira história.
Restam as palavras.
Quando tudo se despedir, tal como as pedras, ficam
as palavras.
Hannibas sabe o que procura e sempre soube como aqui
chegou.
Escuta a vibração da montanha, a palpitação do
coração de Wawaghan.
Escuta o coração de Zharkhanis ao som dos cânticos hipnóticos
de Baharhvatin.
Volta a assumir o seu corpo azul escamado para assim
percorrer o que resta do caminho. O vento continua a soprar forte e fustiga com
violência estes cumes escarpados onde Hannibas parou para descansar.
O frio e a neve escondem tudo o que por aqui se encontra,
mas são incapazes de cobrir a pequena árvore onde o jovem príncipe descansa e medita,
mantendo-o protegido da tempestade.
A sétima chave ser-lhe-á entregue, no mosteiro, na presença
do grande xamã Zharkhanis.
Provará saber viver e respirar em tudo o que vive.
Provará saber sentir e existir em todas as coisas e todas
as coisas em si.
Voltará a responder à voz da lei austera e apontará,
para sempre, o caminho, como estrela da tarde, à multidão de peregrinos perdidos
que o aguardam e caminham pela escuridão.
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