sexta-feira, 30 de setembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 2


16 de Setembro 2011

Setembro passou sem se sentir. Um mês inteiro, como uma sombra que se adivinha mas que, sozinha, avançou defendida pelas penumbras até alcançar o seu desígnio. Um mês inteiro, não um momento.
Setembro levou consigo as histórias e as palavras que não lhe escrevi. Fizeram-me falta essas palavras, essas histórias, as personagens que surgem sem avisar e que sempre ali estiveram, embrulhadas comoum presente.
Setembro passou sem se sentir e usurpou todas as palavras que me devia ter ensinado. Necessito destes momentos para encontrar as histórias feitas com as palavras que não sabia ter em mim.
Setembro fugiu, desapareceu como areia fina pelo intervalo de meus dedos e com ele desapareceram todas as histórias invisíveis que o tempo assim arrastou. Levou consigo mais paisagens, enredos, viagens e as memórias dessas companheiras que ninguém conheceu. Essas histórias pertencem às palavras que não as fizeram crescer.
Olhar para este Setembro fugidio por onde o Outono entrou, onde os dias se encolheram e as noites alargaram.
Hoje, Setembro não passará sem se sentir. Neste momento, nesta mancha branca desnudada, cresceram mais palavras, outros momentos. Aqui se dá conta do efémero, da rapidez com que passam todos os momentos. Aqui damos atenção ao ar que respiramos, a todos aqueles que nos rodeiam, aos sons dos pássaros que se vão despedindo, aos passos apressados de quem vive, de quem corre, de quem se esquece de todos os Setembros que passaram sem se sentir
Amanhã será Outubro. Desejo que não corra tão apressado como o amigo. Desejo que não me sonegue as paisagens, as personagens e as viagens de outras tantas histórias que sei viverem em mim.
As pedras arrastadas pelos dias são como folhas,páginas inteiras que permanecerão em branco. Em cada uma dessas pedras ficaram arquivados os momentos que nunca se disseram, ficaram guardados os passos nunca dados e as águas das chuvas que nunca aconteceram.
Setembro derrete com um calor mais próprio do pico doVerão. A humidade cola a roupa aos corpos causando um desconforto que já não se enquadra neste tempo. O último dos dias deste Setembro não roubará todas as palavras. Consegui deslindar o que se encontrava escondido em algumas das suas pedras.
Antes que os últimos raios de luz desapareçam e o entardecer convide a noite a cair, resgato mais algumas palavras às pedras.
Esta canção não é sobre mim.
A coragem para retirar os momentos a cada dia necessita de ser alimentada e cuidada com a devida atenção.
Descobrir as peças deste puzzle, encaixar uma a uma,virar as que se escondem debaixo de outras, agregar as que possuem as mesmas cores e texturas, combinar as formas serpenteantes encaixando-as, brincar depois com elas às escondidas e ser muito paciente para fazer crescer o quadro que se vai lentamente revelando. Voltar depois atrás, brincar com as peças, voltar a escondê-las e escutar os sons ritmados e melodiosos que produzem quando as faço saltar umas por cima das outras.
O que interessa para estes momentos é o somatório detodas as lembranças. Histórias feitas de momentos que, se me pertencem, é somente porque descobri em mim partes importantes de algumas histórias e, quem sabe, até partes da primeira.
As ilhas que somos são atravessadas pela linguagem. Assim construímos as pontes feitas com palavras, feitas com todas as palavras que fizeram parte das nossas vidas e das vidas de todos aqueles a quem também já pertenceram.
Porque será assim?
Assim é porque estes momentos não são acerca de mim.
Assim é porque estes momentos são acerca do contributo das palavras para a construção das ideias de todos os momentos. Sem as palavras não existiriam as histórias e sem elas não seríamos capazes de entender o tempo, aquilo que ele nos faz e como nos transforma.
Nada nesta canção é acerca de mim.
Apesar de parte das histórias terem acontecido em espaços e em tempos distintos, os medos, os nomes e os segredos que nelas se revelaram trouxeram novas perspectivas e diferentes visões ao que nunca aconteceu. Esta é a lição que me tem sido ensinada pelas sábias pedras onde estas histórias estão cicatrizadas. Nelas tudo se encontra arquivado.
As pedras são invisíveis e os dias encarregam-se de as transportar desde o início dos tempos.
Um segredo? É mais uma história escondida dentro de outra história que é a da própria ilha de quem a descreve. Os sabores alteram-se e deixamos de escutar, de ver e de sentir as coisas da mesma maneira.
As manhãs de cada dia podem desvendar partes importantes desses segredos invisíveis, dessas ilhas escondidas no interior de cada um de nós.
Se não houver nada para contar ou escrever, haverá sempre alguma pedra invisível para descobrir.

Eu quero acreditar em ti
Não desejo ficar de fora das histórias

Setembro fugiu
Roubou milhares de palavras e pedras mensageiras

Momentos
Servem para encontrar histórias
Feitas com palavras que não sabia ter em mim

Setembro fugiu
Levou consigo as paisagens
Enredos e viagens
e amanhã será Outubro
Com ele nascerão novas pedras
Feitas com palavras que não sabia ter em mim

Não passará sem se sentir
Pois esta canção não é sobre mim
É sobre como se constroem
Os momentos

Nada nesta canção é sobre mim

As pedras invisíveis
Serão desembrulhadas
Marés de letras alterarão os sentidos
Todos os sentidos

Porque há sempre uma pedra invisível
Para descobrir
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sábado, 17 de setembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 1



16 de Setembro 2011

Não imaginava que iria viajar até tão distantes paragens. As histórias constroem-se ao seu ritmo e as personagens surgem, invariavelmente, sem prévio aviso. Apenas a luz, o tempo impiedoso e as cores que os objectos se encarregam de reflectir, são imutáveis. Os idosos entregam-se às mesmas conversas de sempre e os ritmos avançam iguais ao que sempre foram.
Os espaços dos homens transformaram-se, revigoraram-se, reinventaram-se com ou sem a sua ajuda e a eles se colou uma penugem invisível que os segue para todo o lado como uma segunda pele. As viagens podem ser curtas, longas, frágeis ou impetuosas, dolorosas, intranquilas conforme as águas e as marés e os ventos. Procuram as respostas nas coisas simples do dia-a-dia e alimentam-se do que lhes é colocado ao seu redor. Fogem uns dos outros na procura de caminhos mais sensatos para percorrer. Questionam os porquês das coisas, de todas as coisas.
As suas histórias são arquivadas no tempo que as dilui sem destruir.
Esse imenso edifício invisível tem de ser leve para poder sobreviver. Foi construído com lágrimas, com desesperos, com a solidão de tantos receios. É mantido com todos os cuidados por anjos sem rosto que lhe fornecem bebidas frescas e doces, néctares perfumados e lhe servem com carinho tudo aquilo que necessita para se manter sempre jovem e vigoroso. Por vezes tem de contar sem falhas todos os enredos, todas as alegrias e segredos, as peripécias e sofrimentos de todos os sonhos, todas as viagens, todas as forças e todas as fraquezas que assim o construíram. O muro que protege esta moradia dá uma frágil sensação de segurança. Num declive acima dele nasceu um pequeno jardim onde se plantaram plantas e flores tão diversas como diversas são as muitas cores de nossos olhos. Anima-se assim a escarpa ajardinada que se vislumbra do pátio até ao topo do pequeno muro que também a sustenta. Adivinha-se um relvado bem tratado entre o jardim e o piso térreo da habitação. As janelas estão protegidas com grades robustas na parede que dá para a zona oriental da avenida. Não se adivinha a vida nas cercanias, no pátio e junto ao jardim. Pelas vidraças nada é visível nem mesmo com uma das portadas da janela do piso superior entreaberta. Um varandim rodeia o primeiro piso dando a volta a toda a casa. Muros, grades, vidraças escuras, portas e janelas fechadas, silêncios, vidas por adivinhar, rostos que não se revelam ou que estão simplesmente escondidos dentro do edifício. O mundo, do lado de fora, continua igualmente frágil. Mais gente, cada vez mais gente se movimenta sem se procurar conhecer. Constroem casulos, conchas com cascas cada vez mais sujas e quebradiças, cada vez mais frágeis e enegrecidas.
Correm sem saber ao certo que destino tomar. Correm uns atrás dos outros e correm sem saber porquê. O que avança primeiro que os outros também não sabe qual a razão que o levou a tomar a iniciativa de caminhar por ali. E assim se formaram gigantescas irmandades de caminhantes errantes, seguidores de guias desgovernados que não compreendem porque se formou tanta agitação e reboliço atrás deles. Não existe uma justificação aceitável para que tal tenha acontecido. Alguns deixaram de ser guias e avançaram na direcção do último seguidor de um outro guia. Muitos foram os guias que assim procederam criando gigantescos formigueiros humanos. Milhares de guias com dezenas de milhões de seguidores errantes, todos avançando sem aparente destino ou objectivo. Para quando os seus caminhos se cruzarem, criaram uma regra muito simples e bastante eficaz. O seguidor de um determinado grupo de viajantes intercala a passagem com aquele outro que com ele se cruzar. De forma ordeira o começaram a praticar desde que o primeiro grupo de três começou a viajar. Esse primeiro guia conseguiu juntar atrás de si a primeira congregação de caminhantes, a primeira de muitos milhares que se seguiram. Cada um fechado no seu casulo, fazendo de conta que sabe o que quer e qual o destino a seguir. Fazendo de conta que sabe o que gosta e o que deseja alcançar. Em todos os momentos que o comunica mente mais um pouco, mente a si próprio, mente antes mesmo que as palavras lhe cheguem à memória, antes da memória se dar ao luxo de começar a trabalhar. E de tanta mentira, de tanta construção feita de falsidade, se constrói o carácter dos caminhantes. Por debaixo das diferentes camadas de mentiras desenvolveram as ideias, as ambições. Todos os destinos foram construídos tendo como base as mentiras de cada um, salvaguardadas pelos seus guias e refugiados nos casulos que foram crescendo ao seu redor como o muro que protege a habitação sem vida.
Depois das chuvas da monção regressou a normalidade ao norte do país. O rio cresceu muito para lá das suas margens. Esta foi uma monção como não se via há muitos anos. Os milhões que necessitam dessa dádiva para sobreviverem agradecem aos deuses benevolentes a generosidade deste ano. Tudo rejuvenesce e tira partido das águas milagrosas da monção. A diferença é visível um pouco por toda a parte. Os animais alegram-se, o povo rejubila com o ritmo natural dos elementos que, século após século vai mantendo a esperança nos rostos e as vidas quase imutáveis e tão idênticas às dos seus antecessores. Esta aliança com o passado fornece uma rara solidez, uma sensação de movimento perpétuo que se vai repetindo através destes ciclos ímpares de rejuvenescimento. Redescobrem-se tão iguais ao que sempre foram.
As mesmas luzes, as mesmas águas e a mesma mãe-montanha providenciam a protecção da moradia sagrada onde todos procuram a segurança nos seus jardins. Os guias destas paragens são diferentes, sempre o foram, na escolha das viagens que proporcionam a quem os deseja acompanhar. Não é comum encontrar por aqui quem avance sem conhecer o que deseja alcançar. Não se avança sem conhecimento de causa e a causa continua a ser a procura de todas as histórias, de todas sem excepção, até da primeira. Aos que seguem atrás do guia são explicadas as razões porque tal acontece. Cedo percebem que o caminho a percorrer procurará descobrir todas as histórias. Isso é necessário para que possam ser capazes de edificar a sua própria história e passarem dessa forma a fazer parte dela e de todas as outras. Só assim se poderão fundir para que a união entre todas elas se possa consumar. Só então passarão a entender verdadeiramente todos os significados contidos nesta importante viagem.

No início era a história
feita de luz
de tempo impiedoso
de objectos coloridos
imutáveis

no início era a viagem
agitada, dolorosa, intranquila

e os homens fugiam uns dos outros
arquivavam as histórias no tempo
mantidas por anjos sem rosto

Muros protegem
jardins embelezam
e a vida fica esquecida no interior
onde os rostos não se revelam
crescendo casulos sujos e quebradiços

centenas de milhões de seguidores errantes
esperavam o fim da monção
esperavam por este momento
como nos séculos de seus avós

onde a mesma luz
e as mesmas águas
lhes dizem qual o caminho a seguir

e qual a história
que terão de construir
.

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