quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 23




28 de Dezembro de 2011

O ambiente no grande salão conhece nova luminosidade. Os sonhos e os futuros de todas as histórias deste Benzerinagui ficaram cristalizados por séculos de paragem. Uma das histórias continha essa assinatura nas palavras.
O herói necessitou desse momento para crescer, para encontrar o seu destino escrito em letras castanhas, de um tom quente e perfumado, num rectângulo cor de musgo. Mais vulnerável que nunca, esse herói teve um destino que o escolheu.
Todos os elementos se encontram novamente em posição. Ainda há muitos jogadores com planos de vitória agora que o tempo retomou o seu caminho.
As mesas de jogo tremeram, os odores alteraram-se após esta cristalização forçada por uma das histórias. As apresentações de tantos enredos e epopeias deixaram cair muitos criadores.
Ninguém está preparado para ser apontado por Tzu Lee Khan como o próximo a sair. Cada uma destas aventuras ambiciona alcançar a glória da vitória final. Com a clássica elegância de sempre escondida na sua posse e caminhar, o grande Mestre indica mais quatro vencedores de quatro mesas do salão. Como acontece em todas as designações, os vencedores recebem com entusiasmo a grande novidade e carregam as suas brilhantes criações para a nova dimensão do Benzarinagui. As suas mesas iniciais partem-se em mil pedaços e mil músicas tocam para celebrar estas vitórias. Tzu Le Khan indica aos quatro jogadores as suas posições nas três novas mesas do salão. Enquanto as músicas tocam, a comitiva é respeitosamente saudada pelos restantes jogadores através de fortes aplausos.
Os mil pedaços destas mesas juntam-se aos outros estilhaços de mesas e aguardam os restantes fragmentos que a eles se irão juntar. De todos eles se construirá a mesa final deste Benzerinagui, a mesa onde se confrontarão os três últimos escritores.
É irrealista antecipar um prognóstico estando apurados dezanove vencedores iniciais. As três mesas vão ficar mais compostas com mais estes quatro que a eles se juntarão. Sete estão sentados na primeira mesa, seis na segunda e Tzu Lee Khan decidiu fechar os dez lugares da terceira mesa sentando à sua volta três dos quatro vencedores agora encontrados.
Falta ainda encontrar sete vencedores das trinta mesas iniciais.
Uma dessas sete mesas iniciais ainda mantém dez jogadores à sua volta. Como estátuas, rabiscam sem tréguas, acrescentam, uma após outra, palavras e mais palavras aos seus enredos. Acrescentam, uma após outra, viagens e mais viagens aos seus segredos. Acrescentam, uma após outra, paisagens e mais paisagens às epopeias e aumentam o volume dos manuscritos mantendo fiéis seguidores em todos os recantos do universo colados de satisfação às suas holoesferas.
Após tantos séculos passados, com tantos acontecimentos surpreendentes, com tantas irregularidades cometidas, com milhões de avanços e recuos, saltos inusitados nas prosas e nos enredos, é a primeira vez em todos os Benzerinaguis já realizados nesta nova configuração, que nesta fase avançada do jogo se mantêm dez jogadores iniciais numa mesma mesa de jogo. Aqui se reuniram jogadores de altíssima craveira. Os olhos não pestanejam, as mãos não vacilam, as testas não dão sinais de cansaço, as penas não se esgotam nem quebram e os heróis que avançam nestas histórias são iluminados como iluminados são os seus destinos.
Enquanto aplaudem os vencedores saídos de cada uma das restantes mesas do salão, as histórias não param nas suas cabeças, tal é o treino e a sofisticada técnica destes jogadores. As suas personagens lutam, descansam, regressam aos lugares iniciais de cada uma das histórias, dialogam, conhecem-se uma primeira vez, pensam de forma independente de quem as cria, procuram o seu lugar e qual o seu papel nas epopeias. Viajam, vêem os mundos criados com os seus olhos especiais, antecipam muitos dos incidentes, salvam-se de alguns, deixam-se abater por outros, sempre debaixo de uma estranha coloração azul que surge comum a todas as histórias e faz parte integrante delas como se de uma personagem se tratasse. O sangue é também um elemento presente em todas as histórias, sangue de vítimas e de sobreviventes.
Os heróis saem incólumes de todos os desastres, são protegidos pelos seus deuses ou são eles próprios deuses protectores dessas histórias. O tempo avança lentamente, as distâncias percorrem-se vagarosamente, sobem-se os degraus de cada escadaria com todos os cuidados. Os templos são construídos e destruídos antes e depois de cada celebração e a muitos desses heróis foi atribuída uma qualidade notável que os distingue de todos os outros. As doenças não parecem afectá-los, o tempo não parece afectá-los e as suas relações com os restantes personagens são totalmente invulgares. Os espelhos nem sempre reflectem as suas imagens e alguns, quando o fazem, quebram-se com grande facilidade.
Os heróis recebem muitas histórias como presentes, normalmente com finais surpreendentes, autênticas obras de arte que só são oferecidas em ocasiões excepcionais. Alguns heróis passam um terço das vidas a ler essas histórias que recebem de presente, essas extraordinárias combinações de palavras que lhes deixa os ossos fortes como aço e lhes permite não mais se magoarem ou adoecerem. As histórias são fantásticas, saem das penas dos seus próprios criadores, saem dos cartões coloridos e perfumados, aleatórios, e protegem-nos sempre.
Os heróis escondem-se, por vezes, das próprias famílias pois esta prepara-lhes as respostas mais justas para nunca os afectar. Decidem lutar por elas e por elas começar sempre de novo, como se de um milagre se tratasse. E que estranhos personagens são criados em cada uma dessas histórias. Servem para despertar a curiosidade dos heróis e perturbam-lhes estabilidade. O seu lugar nessas histórias acaba por ser quase tão importante como o dos heróis. Ajudam na definição do seu carácter e a encontrar parte das respostas para as dúvidas que carregam. Exageram a realidade dentro de cada um dos enredos e provocam acidentes, originam combates, doenças, desastres, perseguições e frustrações. As viagens e os desafios assim criados servem para colocar inúmeras questões aos heróis das epopeias que põem em risco a própria vida para alcançar os fins a que se propõem.
Os heróis servem de exemplo a todas as personagens. São fortes, conseguem levantar todos os pesos e vencer a maioria dos obstáculos. Fazem-no com uma leveza sem igual. Aumentam os pesos em cada desafio até sentirem o medo percorrer o corpo como um relâmpago invisível. Voltam a vencer mais esse desafio, e outro ainda, e outro também, ficando no final a observar silenciosamente o resultado dessas vitórias. Aos que presenciam as vitórias dos heróis, fica um visível contentamento que se perpetuará até ao fim dos seus dias. Uma recompensa por terem estado no mesmo lugar e à mesma hora em que o herói venceu.
Os heróis permanecem calmos num estado de dúvida permanente. Nestes tempos medíocres em que as pessoas perdem facilmente a esperança, os heróis são tudo aquilo que lhes resta. Alguns heróis esquecem quem os criou, esquecem quem os salvou de uma morte quase certa, a mesma que os tornou assim tão fortes e singulares. E uma estranha coloração azulada parece fazer parte de todas estas histórias.
Alguma confusão é gerada na cabeça de muitas personagens. Sentem-se tocadas pela mesma luz que ilumina os seus heróis.
A cor de ferrugem desenhou no verde musgo o destino deste herói! Um primeiro encontro com esse destino, logo no primeiro dia de viagem, acordou-o do pesadelo em que vivia. Hannibas não é mais o mesmo que era entes desse dia. Não se sente bem por ser quem é. Podia fazer tantas outras coisas se fosse outro, se não tivesse este dom e este destino, se não tivesse que responder a esta chamada. O rumo da sua vida mudou. Tem de avançar devagar pois já não é mais o pequeno príncipe herdeiro Hannibas.
Todos os heróis possuem um ponto fraco que terão de conhecer antes dos seus inimigos. Neste segundo dia de viagem Hannibas terá de compreender qual é o seu. Terá de compreender a essência de quem é. Esquecidas que foram as normais incidências do seu passado e das suas anteriores viagens, recorda agora os seus pesadelos. Recorda o dia da visita do dragão! Recorda os incêndios, os desastrosos momentos passados pelos habitantes de Chover, recorda os ruídos, os gritos e a escuridão imposta pelo invasor. Recorda a sua colecção de receios e deseja estar agora rodeado pelos amigos que deixou na corte. Reconhece onde se abrigam todos os inimigos, todos os falsos profetas e reconhece em todos esses rostos os venenos e os males que provocaram.
Hannibas não desejava este poder que o impele na procura e na destruição dos inimigos do reino. Cobre o seu corpo com um longo manto escuro que lhe tapa a cabeça e as asas invisíveis e segue no encalço desses inimigos. Todos aqueles que mataram sem causa, os que roubaram sem causa, os que ofenderam sem causa são perseguidos por Hannibas ao longo deste segundo dia de jornada. Liberta os filhos daqueles que foram mortos pelo dragão assassino. Liberta as mulheres feitas prisioneiras pelo dragão assassino.
O dragão ataca Hannibas cobardemente, escondido na escuridão e protegido por enormes relâmpagos criados ao seu redor. Hannibas levanta-se, volta atrás, eleva-se muito acima das nuvens escuras que fabricam as armadilhas luminosas que protegem o dragão. Hannibas salta para as costas da besta e agarra-se com todas as forças ao pescoço escamoso do animal cortando-lhe a respiração.
As gémeas Öllin ficam brancas de terror. As gémeas olham na direcção do jogador que escreve estas palavras na folha branca do jogo e enchem um copo de cristal com água fresca. O escritor coloca a folha branca com estas palavras junto ao copo de cristal das adversárias e deixa cair umas lágrimas de satisfação. Os olhos das irmãs são maiores que o do resto dos escritores, como maior é a sua maldade.
O herói das gémeas acabou de ser derrotado e as suas histórias deixaram de fazer qualquer sentido.
Quando acordou, Hannibas ficou sem saber qual o seu lugar neste mundo, perdeu quase toda a esperança até que das entranhas do dragão agora derrotado se escutaram as vozes alucinadas das gémeas escritoras.
A vitória sobre o dragão deixou-o triste.
O seu destino encontrava-se assim escrito.

Hoje não se escreve outro poema
Celebra-se o futuro de todas as histórias


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