sábado, 10 de dezembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 19



2 de Dezembro de 2011


Não sei o que me espera.

Não sei se conseguirei alcançar o sopé da montanha sagrada nos dias destinados. Não sei se serei capaz de suportar este peso ao longo da marcha servido apenas com um simples cantil de água fervida.

Sinto o chão como nunca, sinto-lhe o fresco e sinto a brisa húmida.

Sinto os perfumes das planícies carregadas de serzedhis, sinto a chuva fina a abençoar o início do trajecto.

O tio Larniki não se aproximou para se despedir mas o seu olhar e o subtil sorriso transmitiram-me a confiança necessária para realizar o que todos esperam de mim.

É deste lado direito da margem do Marthiris que começa realmente a minha viagem. Deste lado irei ao encontro dos primeiros dias de guerreiro da minha vida.

Não imaginei que teria de viajar até paisagens tão distantes.

Nestas paragens e nestes momentos, após os meus primeiros milhares de passos, chego a algumas povoações dispersas que aparentam um estado de semi-abandono. Alguns dos habitantes mais idosos mantém entre si estranhas conversas com temáticas pouco comuns e algo absurdas. Não dão conta da minha chegada e não parecem preocupar-se com a minha presença tão perto deles. Apontam para o chão, para as árvores, para as paredes degradadas das habitações. Apontam para o céu e para o rio Marthiris que quase já não se vislumbra daqui. Falam tanto por gestos como através deste estranho dialecto do Norte, mantido assim desde os primeiros tempos, muito antes do nascimento do império de Chover. O nosso reino não se tinha formado nem crescido em esplendor.

O meu pai falou-me nestes estranhos rituais destas tribos do Norte.

Recordo-me, vagamente, de uma das suas histórias. Falava de estéreis conversas mantidas por anciões. Alguns desses idosos ocupavam-se assim, dessa maneira, apenas para matar o tempo. Talvez servissem as conversas para recordar a juventude de outrora, os seus feitos, as suas conquistas. Talvez servissem para se manterem activos, para se sentirem parte integrante do ritmo de todas as coisas.

Um homem, seja ele imperador, rei ou simples pastor, pode ter para si acautelada uma curta ou uma longa viagem. Pode ter para si guardada uma viagem delicada ou uma mais dolorosa, intranquila e agitada.

O meu pai contou-me ainda que esses homens acabavam por ser como as águas do Marthiris ou como as marés dos mares de Centaurydhis e de Akorkh. Eram como os ventos que penteiam os mais altos cumes da sagrada Wawaghan e os picos escarpados dos montes Serenos. Essas conversas que praticavam, de forma tão assoberbada, alimentavam a sua própria existência.

Ao meu redor começavam a aglomerar-se alguns dos idosos que, apesar de nunca olharem para mim, resolveram aproximar-se continuando a conversar em estranhas ladainhas, gesticulando e apontando em todas as direcções. Não me sinto ameaçado mas a sua proximidade causa-me algum nervosismo. Reparo que as íris de seus olhos são baças assim como é baço o cabelo de muitos destes anciões.

Tocam-me.

Tentam descobrir como sou através dos seus dedos.

Só agora percebi que são cegos e que esta é a razão principal para alguns dos seus estranhos comportamentos.

Questionam a minha presença aqui, quem sou, o que me trouxe cá, porque carrego tanto peso nas costas, porque caminho descalço se digo ser herdeiro real. Perguntam porque não possuo ainda as asas consagradas e porque parei junto a eles se a minha missão é caminhar.

Dizem-me que as conversas que praticam servem apenas para fugir cada vez mais uns dos outros. Todos parecem tecer comentários e considerações diferentes sobre os mesmos assuntos do dia-a-dia. Procuram encontrar o mais sensato dos caminhos, tal como eu, e procuram as respostas aos porquês de todas as coisas. Dizem possuir um vasto arquivo sobre todas as histórias de todos os viajantes que alguma vez aqui vieram ter. De quando em quando entregam-nas ao sacerdote do tempo que desce da sagrada Wawaghan para as recolher e para as levar de volta. São depois diluídas nas suas pedras ficando a fazer parte de todas as outras histórias que fizeram crescer a rainha das montanhas, tal como acontece desde que nasceu a primeira de todas as histórias.

Assim, nesta simulada invisibilidade, se continua a construir esse vasto edifício branco chamado Wawaghan. Mantém-se, contudo, a leveza característica da sua nobre linhagem como era no início dos tempos.

Em mim, dizem os idosos ter descoberto um anjo ainda sem rosto, e dizem também que só com as minhas mãos me conseguirei decifrar.

A minha história passará a ser contada por eles, como a de todos os outros anteriores viajantes. Foi assim com Zaffiris e com Lakis, meu saudoso pai.

Pergunto-lhes por ele e se recordam as suas mãos e o seu rosto e o seu perfume. Pergunto-lhes se recordam as suas palavras e o tom da sua voz. Pergunto-lhes como entenderam a sua alma e as suas vontades, os sonhos que nessa altura ambicionava concretizar e qual a sensação que lhes causou quando por aqui passou.

Não me respondem, nada dizem. Apontam na direcção da mãe montanha dando-me a entender que essa é, definitivamente, a direcção a tomar e o caminho que terei de percorrer.

As últimas palavras dos cegos idosos continuam a repetir-se na minha cabeça. Quem serão esses anjos sem rosto que por aqui, antes de mim, também passaram? Porque me associaram a essas criaturas?

As histórias são muito importantes por estas paragens. O meu pai sempre me disse que estas histórias eram verdadeiramente importantes. Para conseguir construir tudo aquilo que seremos no futuro, temos de saber interpretar as mensagens escondidas nas lágrimas de todas as histórias, nos seus desesperos, nos receios e também na solidão das suas palavras. Pelo que eu consegui entender, são os anjos que habitam nos picos mais isolados da grande cordilheira sagrada que se encarregam de manter vivas e saudáveis todas as histórias que fizeram crescer Wawaghan. São os próprios anjos que as transportam, imaculadas, a todos os lugares onde essas histórias são aguardadas. Entregam-nas aos cuidados de anciões leitores que depois as lêem, divulgam os seus enredos e comunicam com afeição todas as metáforas, segredos e alegrias, todos os sofrimentos, sonhos e viagens.

É nesta aparente frágil segurança que o gigantesco muro branco de Wawaghan protege todas as histórias. Aqui são mantidas jovens, saudáveis, e se perpetuam desde o início dos tempos, desde esse tempo longínquo em que a primeira de todas as histórias aqui chegou.

O meu pai, através das palavras e das histórias que me contou, deu-me conta deste lugar e das muitas histórias que aqui foram acrescentadas. Só agora as coisas começam a fazer algum sentido.

Dizia, sempre o disse, que as histórias, todas as histórias, estavam guardadas em pedras invisíveis que até aqui foram carregadas desde o início dos tempos.

Uma noite, contou-me que tinha conseguido decifrar todas as palavras e todas as metáforas e todos os segredos de uma dessas pedras invisíveis. Percebeu que nessa história escondida se encontrava uma outra história que era parte da história da sua própria vida. Nesse momento, os seus sabores alteraram-se. Deixou de escutar, de ver e de sentir as coisas da mesma maneira. E da sua boca saíram as seguintes palavras:

E se não houver nada mais para contar, haverá sempre alguma pedra invisível para descobrir”.


Eu quero acreditar em mim

Não desejo ficar fora das histórias

Novembro fugiu

Roubou milhares de palavras

E pedras mensageiras


Estes momentos

Servem para contar a minha história

Feita com palavras que não sabia ter em mim


Novembro fugiu

Levou com ele novas paisagens

Muitos enredos e viagens


Mas viu também nascer novas pedras

Feitas com palavras que não sabia ter em mim


Não passou sem se sentir

Pois esta canção é sobre mim

É como se constroem

Os meus momentos


E as palavras desta canção

Falam de mim


E muitas outras pedras invisíveis

Serão desembrulhadas

Marés de letras alterarão os sentidos

Todos os sentidos


Porque há sempre uma pedra invisível

Para descobrir


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