sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 24



29 de Dezembro de 2011

Negra é a cor do cartão do sentimento.
Vermelhas, cor de sangue, as letras que constroem essa palavra.
Um longo silêncio vestiu o salão enquanto as gémeas se recompõem. Longe de se darem por vencidas, vão novamente alterar as estratégias. É a terceira vez que o fazem, o que nunca antes tinha sucedido.
Tsu Lee Khan aproxima-se da mesa, silenciosamente, como um animal furtivo.
Os olhos das escritoras chispam de raiva, os cabelos mudam de cor, as palavras continuam presas nas pontas de suas penas e uma aparência de loucura sente-se no perfume que emanam. Estão nervosas, insatisfeitas, o fantasma da derrota empenhou-se em pressioná-las. A arrogância desapareceu e o orgulho está ferido. Um espanto genuíno ilumina-lhes o rosto. As histórias dos seus adversários conseguiram manter à distância as investidas das Öllin e foi-lhes difícil semear o caos e a destruição por essas epopeias.
Tsu Lee Khan prepara-se para anunciar os primeiros jogadores eliminados desta mesa.
Um sabor amargo doce invade-lhes o palato e todos os dez jogadores se sentem prisioneiros do destino.
O chá será servido, como sempre, nesta mesa onde se anunciam as eliminações.
Casca de gengibre, folhas de manga e uma quase imperceptível gota de manteiga de soja derretida, serão adicionados numa magnífica chaleira de água límpida, fervida cinco vezes, para assim poderem ganhar vida. Mas antes o nervosismo das gémeas terá de ser controlado. Nenhum movimento é permitido, nenhum som, nenhum abalo pode interferir na coreografia ritualizada de mestre Tsu Lee Khan enquanto prepara o chá Kalatziki aos jogadores que irão permanecer em jogo.
Nada é feito ao acaso. Os silêncios fazem parte da cerimónia. Os tempos de transição entre a limpeza cuidada das chávenas fazem parte da cerimónia. As danças do bule com o calor das chamas que o aquecem fazem parte da cerimónia. O sobe e desce constante do mel atirado com um perfumado pau de canela para o interior de um segundo bule, cópia exacta do primeiro, onde um conjunto de raras especiarias são acrescentadas com pequenos salpicos imperceptíveis ao olhar, fazem parte da cerimónia. Os tomilhos que ardem como incenso para perfumar o salão fazem parte da cerimónia.
Tsu Lee Khan demora os anos necessários na tarefa e servirá oito taças a oito jogadores. Dois não o irão receber e saberão assim que este não será o seu Benzerinagui.
- E porque não existem flores neste salão? Todos já reparam em tantas normas, tanto respeito, tanta rigidez de processos, tantas rotinas nas entregas das diferentes peças necessárias ao funcionamento deste jogo, na falta de uma iluminação adequada, na virtuosidade arcaica do mestre, na austeridade dos seus movimentos, nos séculos de silêncios, e tudo isto com que propósito? E porque coxeia Tsu Lee Khan? Lembrar-se-á dos venenos que o acabarão por derrotar? Lembrar-se-á da sua infância? Lembrar-se-á de ter sido um jovem mensageiro, um jovem personagem numa história horrível capaz de fazer partir a própria pedra que a arquiva? Ao todo quantas pessoas diferentes existem dentro de si, Mestre?
As respostas não podem ser dadas através de um simples sim ou não. Que consequências trará a todos nós esta verdade?
- Quem quer saber o que não é para aqui chamado? A minha resposta é sempre sim e para isso não necessito de nenhum assistente ou instruções. Mais uma vez o ritual do chá Kalatziki enerva sobremaneira os jogadores, é sempre assim! A dúvida provocou esta estranha compilação de palavras. E eu não coxeio! Arrasto a perna direita desde novo, desde muito novo. Digamos que os sonhos foram, nessa fase da minha vida, vencidos pelos pesadelos. Os espelhos quebravam-se ao reflectirem a minha imagem e eu corria feito louco, fugia em direcção à escuridão sempre que tal acontecia. Acordava, depois, ardendo em febre. Descia as escadas e fugia novamente do meu perseguidor. Refugiava-me na biblioteca, fechava-me lá dentro dias a fio e lia todas as histórias, algumas mais de dez vezes, umas atrás das outras como se de água fresca se tratassem. As janelas do outro lado da vida reflectiam umas luzes sombrias que gritavam de forma assustadora, mas a minha curiosidade ia aumentando cada vez mais. Quando procurava descobrir a razão de tanto sofrimento, deixei cair para trás um sinal que me denunciou. Escondi-me debaixo da grande mesa do salão quando o dragão apareceu. As suas patas estavam sujas com o sangue de todas as vítimas, assim com muitas das escamas negras do seu corpo. Veio cheirar-me e depois, abandonou o salão deixando-me regressar ao refúgio da biblioteca onde voltei a permanecer por mais dez dias. O dragão mudava de cor, como a lua de fases e de vontades. Um acidente aconteceu quando o animal se pintou de vermelho da cauda até à ponta de seu longo focinho. A pata traseira ficou presa, estava partida e impedia-o de avançar. Ficou frustrado, sem forças depois de se tentar libertar, e o meu ódio transformou-se em afeição. Passou a fazer parte de mim como a maré dos oceanos. Os meus medos passaram a ser apenas sonhos maus, não mais dragões ou espelhos quebradiços. O dragão gelou, as patas gelaram e o chá Kalatziki foi por mim preparado pela primeira vez. Servi o chá ao animal que agora se vestia de branco da cabeça aos pés. No outro dia acordou. Coxeava e incumbiu-me de uma tarefa. Uma chuva intensa abateu-se sobre tudo o que mexia. Os gritos voltaram, os espelhos quebraram-se, o sangue foi derramado por toda a parte. Quando regressei a besta negra tinha voltado a atacar. Um exagero de morte e destruição foi por ele semeado e nem as chamas altíssimas de tudo o que foi por ele destruído acalmaram a minha angústia. Não entrarei em mais pormenores. A besta não me matou porque me conhecia. Sabia que numa situação de desespero, eu lhe seria útil. A minha dor tinha sido causada pela minha compreensão e compaixão. Na biblioteca, as histórias que li foram de horror. O meu entusiasmo, enquanto as lia, deixou de existir pois todas elas, sem excepção, tomaram conta da minha consciência. O dragão transformou-me em seu criado. Voltou a pintar-se de negro como a noite escura e todas as perguntas que me colocava eram rasteiras, armadilhas que me lançava para seu próprio proveito. O dragão passou a existir em mim. O seu ar altivo, superior e arrogante, os seus gostos inconvenientes por tudo o que era morte, sangue e destruição passaram a fazer parte de mim. E eu não consegui dar outra resposta que não fosse um sim. Mas não quero mais falar sobre isto. As suas perguntas são as de alguém a quem o receio da eliminação paira sombrio e tenebroso. E esse receio não é inocente, bem pelo contrário. Mas afinal o que deseja, de facto a reverendíssima senhora Öllin? A campainha da derrota soou forte no meio dos seus temores? A sua tez pálida disso dá conta. Conhece o dragão de que vos falo, não é verdade? Talvez gostasse de poder voltar a dar uma palavrinha à sua pérfida criação? Tudo isto porque não sabe se lhe será servida uma simples xícara de chá. E que sentido fariam canteiros de flores num lugar destes? O dragão está adormecido, ou talvez não! O sangue que suja as patas da besta podia muito bem ser o sangue da sua cabeça, arrancada sem piedade pelos dentes da própria criação. Eu li essa história na biblioteca onde me escondia. Mesmo negro, o vosso dragão recordava-se de mim e recordava-se de quem o criou. Os sonhos regressaram e o dragão desenhava-lhes todos os pesadelos. Eu acordava com frequência, pois um desses pesadelos era a minha vontade em possuir o poder do dragão. Partiram-se milhares de espelhos à minha passagem e o dragão branco compreendia a minha frustração. E sempre o sangue e a morte a acompanhar a minha sombra e os olhos da besta traziam-na reflectida como uma bênção. Estava condenado. O tempo condenara-me e o dragão condenado condenou-me e depois pintou-se de branco uma penúltima vez. Pediu-me o quente chá Kalatziki. Depois de o beber, falou comigo. Descompôs-me! O dragão branco sabe de todas as mortes e de todas as dores causadas pela sua negra forma. Não quer mais saber de voar e o chá é a única coisa que o acalma. Transformou-se em dragão vermelho da cor do sangue de todas as vítimas e correu como um louco para as longínquas grutas de Falkarydhum. E os pesadelos voltaram a invadir as minhas noites. Numa delas a besta negra regressou para me visitar. Alienado, esqueceu-se que lhe salvara a vida e quase me arrancou uma das pernas. Após o ataque acalmou, e novamente, enraivecido me atacou. Mas esta história é uma história que as senhoras Öllin conhecem bem, não é verdade? Esta é uma história que vos deve ser muito familiar! Não tiveram dúvidas em quebrar uma das regras básicas deste Benzerinagui ao colocar-me a mim, mestre Tzu Lee Khan, como personagem de vossas histórias. E agora vão ter de esperar, como todos os jogadores desta mesa, pela xícara de chá ou pela sua falta. Isto, para vós, é assunto de vida ou de morte. Como é que alguém pode derrotar as famosas Öllin nesta fase do Benzerinagui? Será uma fractura nas vossas almas arrogantes, mais uma lição que terei todo o gosto em providenciar. E os espelhos que desde essa conversa se continuaram a partir, até hoje, eram fruto da vossa imaginação deturpada e mesquinha. O dragão negro foi facilmente aniquilado! A vossa criação caiu aos pés de um herói em crescimento. Mas isto tudo também vós sabeis. Obtendes autorizações fraudulentas para conseguirem ver os enredos de todas as histórias. A porta encontra-se aberta, a decisão de quem fica e quem sai está na distribuição que agora farei destas oito xícaras de Kalatziki!
O dragão negro saiu raivoso debaixo da mesa de jogo e saltou para o pescoço da primeira das gémeas que se manteve heroicamente branda, muda, com os olhos colados nos olhos da besta. O dragão hesita, dá uma volta inteira ao redor da mesa antes de se recolher novamente para baixo dela. Solta ruídos brutais, assustadores, terríveis, como se todas as vítimas de séculos resolvessem cantar de dor ao mesmo tempo. Tzu Lee Khan avança lentamente até junto das cadeiras das jogadoras. Coloca a mão por debaixo da mesa e puxa com gentileza a cabeça branca do dragão. Está cansado, exausto. O corpo está tão branco que se torna transparente. O enorme animal anicha-se junto aos pés do grande mestre, enrola-se como uma cobra e assim permanece.
Mais nenhum movimento se observou no seu imenso corpo escamoso.

Negra
A cor do sentimento
Vermelhas
As letras que constroem a vaidade

E o herói tingiu de branco
As escamas do dragão
Numa história azul
Que nos invade

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