29
de Dezembro de 2011
Negra é a cor do cartão do sentimento.
Vermelhas, cor de sangue, as letras que constroem
essa palavra.
Um longo silêncio vestiu o salão enquanto as gémeas
se recompõem. Longe de se darem por vencidas, vão novamente alterar as
estratégias. É a terceira vez que o fazem, o que nunca antes tinha sucedido.
Tsu Lee Khan aproxima-se da mesa, silenciosamente,
como um animal furtivo.
Os olhos das escritoras chispam de raiva, os cabelos
mudam de cor, as palavras continuam presas nas pontas de suas penas e uma
aparência de loucura sente-se no perfume que emanam. Estão nervosas,
insatisfeitas, o fantasma da derrota empenhou-se em pressioná-las. A arrogância
desapareceu e o orgulho está ferido. Um espanto genuíno ilumina-lhes o rosto.
As histórias dos seus adversários conseguiram manter à distância as investidas
das Öllin e foi-lhes difícil semear o caos e a destruição por essas epopeias.
Tsu Lee Khan prepara-se para anunciar os primeiros
jogadores eliminados desta mesa.
Um sabor amargo doce invade-lhes o palato e todos os
dez jogadores se sentem prisioneiros do destino.
O chá será servido, como sempre, nesta mesa onde se
anunciam as eliminações.
Casca de gengibre, folhas de manga e uma quase
imperceptível gota de manteiga de soja derretida, serão adicionados numa
magnífica chaleira de água límpida, fervida cinco vezes, para assim poderem
ganhar vida. Mas antes o nervosismo das gémeas terá de ser controlado. Nenhum
movimento é permitido, nenhum som, nenhum abalo pode interferir na coreografia
ritualizada de mestre Tsu Lee Khan enquanto prepara o chá Kalatziki aos jogadores
que irão permanecer em jogo.
Nada é feito ao acaso. Os silêncios fazem parte da
cerimónia. Os tempos de transição entre a limpeza cuidada das chávenas fazem
parte da cerimónia. As danças do bule com o calor das chamas que o aquecem fazem
parte da cerimónia. O sobe e desce constante do mel atirado com um perfumado
pau de canela para o interior de um segundo bule, cópia exacta do primeiro,
onde um conjunto de raras especiarias são acrescentadas com pequenos salpicos
imperceptíveis ao olhar, fazem parte da cerimónia. Os tomilhos que ardem como
incenso para perfumar o salão fazem parte da cerimónia.
Tsu Lee Khan demora os anos necessários na tarefa e
servirá oito taças a oito jogadores. Dois não o irão receber e saberão assim
que este não será o seu Benzerinagui.
- E porque não existem flores neste salão? Todos já
reparam em tantas normas, tanto respeito, tanta rigidez de processos, tantas
rotinas nas entregas das diferentes peças necessárias ao funcionamento deste
jogo, na falta de uma iluminação adequada, na virtuosidade arcaica do mestre,
na austeridade dos seus movimentos, nos séculos de silêncios, e tudo isto com
que propósito? E porque coxeia Tsu Lee Khan? Lembrar-se-á dos venenos que o
acabarão por derrotar? Lembrar-se-á da sua infância? Lembrar-se-á de ter sido um
jovem mensageiro, um jovem personagem numa história horrível capaz de fazer
partir a própria pedra que a arquiva? Ao todo quantas pessoas diferentes
existem dentro de si, Mestre?
As respostas não podem ser dadas através de um
simples sim ou não. Que consequências trará a todos nós esta verdade?
- Quem quer saber o que não é para aqui chamado? A
minha resposta é sempre sim e para isso não necessito de nenhum assistente ou
instruções. Mais uma vez o ritual do chá Kalatziki enerva sobremaneira os
jogadores, é sempre assim! A dúvida provocou esta estranha compilação de
palavras. E eu não coxeio! Arrasto a perna direita desde novo, desde muito
novo. Digamos que os sonhos foram, nessa fase da minha vida, vencidos pelos
pesadelos. Os espelhos quebravam-se ao reflectirem a minha imagem e eu corria
feito louco, fugia em direcção à escuridão sempre que tal acontecia. Acordava,
depois, ardendo em febre. Descia as escadas e fugia novamente do meu
perseguidor. Refugiava-me na biblioteca, fechava-me lá dentro dias a fio e lia
todas as histórias, algumas mais de dez vezes, umas atrás das outras como se de
água fresca se tratassem. As janelas do outro lado da vida reflectiam umas
luzes sombrias que gritavam de forma assustadora, mas a minha curiosidade ia
aumentando cada vez mais. Quando procurava descobrir a razão de tanto
sofrimento, deixei cair para trás um sinal que me denunciou. Escondi-me debaixo
da grande mesa do salão quando o dragão apareceu. As suas patas estavam sujas
com o sangue de todas as vítimas, assim com muitas das escamas negras do seu
corpo. Veio cheirar-me e depois, abandonou o salão deixando-me regressar ao
refúgio da biblioteca onde voltei a permanecer por mais dez dias. O dragão
mudava de cor, como a lua de fases e de vontades. Um acidente aconteceu quando
o animal se pintou de vermelho da cauda até à ponta de seu longo focinho. A
pata traseira ficou presa, estava partida e impedia-o de avançar. Ficou
frustrado, sem forças depois de se tentar libertar, e o meu ódio transformou-se
em afeição. Passou a fazer parte de mim como a maré dos oceanos. Os meus medos
passaram a ser apenas sonhos maus, não mais dragões ou espelhos quebradiços. O
dragão gelou, as patas gelaram e o chá Kalatziki foi por mim preparado pela
primeira vez. Servi o chá ao animal que agora se vestia de branco da cabeça aos
pés. No outro dia acordou. Coxeava e incumbiu-me de uma tarefa. Uma chuva
intensa abateu-se sobre tudo o que mexia. Os gritos voltaram, os espelhos
quebraram-se, o sangue foi derramado por toda a parte. Quando regressei a besta
negra tinha voltado a atacar. Um exagero de morte e destruição foi por ele
semeado e nem as chamas altíssimas de tudo o que foi por ele destruído
acalmaram a minha angústia. Não entrarei em mais pormenores. A besta não me
matou porque me conhecia. Sabia que numa situação de desespero, eu lhe seria
útil. A minha dor tinha sido causada pela minha compreensão e compaixão. Na
biblioteca, as histórias que li foram de horror. O meu entusiasmo, enquanto as
lia, deixou de existir pois todas elas, sem excepção, tomaram conta da minha
consciência. O dragão transformou-me em seu criado. Voltou a pintar-se de negro
como a noite escura e todas as perguntas que me colocava eram rasteiras,
armadilhas que me lançava para seu próprio proveito. O dragão passou a existir
em mim. O seu ar altivo, superior e arrogante, os seus gostos inconvenientes
por tudo o que era morte, sangue e destruição passaram a fazer parte de mim. E
eu não consegui dar outra resposta que não fosse um sim. Mas não quero mais
falar sobre isto. As suas perguntas são as de alguém a quem o receio da
eliminação paira sombrio e tenebroso. E esse receio não é inocente, bem pelo
contrário. Mas afinal o que deseja, de facto a reverendíssima senhora Öllin? A
campainha da derrota soou forte no meio dos seus temores? A sua tez pálida
disso dá conta. Conhece o dragão de que vos falo, não é verdade? Talvez
gostasse de poder voltar a dar uma palavrinha à sua pérfida criação? Tudo isto
porque não sabe se lhe será servida uma simples xícara de chá. E que sentido
fariam canteiros de flores num lugar destes? O dragão está adormecido, ou
talvez não! O sangue que suja as patas da besta podia muito bem ser o sangue da
sua cabeça, arrancada sem piedade pelos dentes da própria criação. Eu li essa
história na biblioteca onde me escondia. Mesmo negro, o vosso dragão
recordava-se de mim e recordava-se de quem o criou. Os sonhos regressaram e o
dragão desenhava-lhes todos os pesadelos. Eu acordava com frequência, pois um
desses pesadelos era a minha vontade em possuir o poder do dragão. Partiram-se
milhares de espelhos à minha passagem e o dragão branco compreendia a minha
frustração. E sempre o sangue e a morte a acompanhar a minha sombra e os olhos
da besta traziam-na reflectida como uma bênção. Estava condenado. O tempo
condenara-me e o dragão condenado condenou-me e depois pintou-se de branco uma
penúltima vez. Pediu-me o quente chá Kalatziki. Depois de o beber, falou
comigo. Descompôs-me! O dragão branco sabe de todas as mortes e de todas as
dores causadas pela sua negra forma. Não quer mais saber de voar e o chá é a
única coisa que o acalma. Transformou-se em dragão vermelho da cor do sangue de
todas as vítimas e correu como um louco para as longínquas grutas de Falkarydhum.
E os pesadelos voltaram a invadir as minhas noites. Numa delas a besta negra
regressou para me visitar. Alienado, esqueceu-se que lhe salvara a vida e quase
me arrancou uma das pernas. Após o ataque acalmou, e novamente, enraivecido me
atacou. Mas esta história é uma história que as senhoras Öllin conhecem bem,
não é verdade? Esta é uma história que vos deve ser muito familiar! Não tiveram
dúvidas em quebrar uma das regras básicas deste Benzerinagui ao colocar-me a
mim, mestre Tzu Lee Khan, como personagem de vossas histórias. E agora vão ter
de esperar, como todos os jogadores desta mesa, pela xícara de chá ou pela sua
falta. Isto, para vós, é assunto de vida ou de morte. Como é que alguém pode
derrotar as famosas Öllin nesta fase do Benzerinagui? Será uma fractura nas
vossas almas arrogantes, mais uma lição que terei todo o gosto em providenciar.
E os espelhos que desde essa conversa se continuaram a partir, até hoje, eram
fruto da vossa imaginação deturpada e mesquinha. O dragão negro foi facilmente
aniquilado! A vossa criação caiu aos pés de um herói em crescimento. Mas isto
tudo também vós sabeis. Obtendes autorizações fraudulentas para conseguirem ver
os enredos de todas as histórias. A porta encontra-se aberta, a decisão de quem
fica e quem sai está na distribuição que agora farei destas oito xícaras de
Kalatziki!
O dragão negro saiu raivoso debaixo da mesa de jogo
e saltou para o pescoço da primeira das gémeas que se manteve heroicamente
branda, muda, com os olhos colados nos olhos da besta. O dragão hesita, dá uma
volta inteira ao redor da mesa antes de se recolher novamente para baixo dela.
Solta ruídos brutais, assustadores, terríveis, como se todas as vítimas de
séculos resolvessem cantar de dor ao mesmo tempo. Tzu Lee Khan avança
lentamente até junto das cadeiras das jogadoras. Coloca a mão por debaixo da
mesa e puxa com gentileza a cabeça branca do dragão. Está cansado, exausto. O
corpo está tão branco que se torna transparente. O enorme animal anicha-se
junto aos pés do grande mestre, enrola-se como uma cobra e assim permanece.
Mais nenhum movimento se observou no seu imenso
corpo escamoso.
Negra
A cor do sentimento
Vermelhas
As letras que constroem a vaidade
E o herói tingiu de branco
As escamas do dragão
Numa história azul
Que nos invade
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