terça-feira, 29 de novembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 17


29 de Novembro de 2011


A primeira palavra da primeira de todas as pedras encontra-se escondida algures na vasta cordilheira de Wawaghan.

Larniki sabe, porque já foi a folha em branco onde a primeira história se escreveu, como se alcança o pico sagrado que esconde esse poema.

Do nada se resolveu criar um tempo e um espaço onde as primeiras lamas se formaram. Dessas lamas se moldou toda a existência e todos os tempos paralelos que coexistem com o primeiro que assim foi determinado. Dessas lamas se considerou a criação de todas as distâncias e de todos os limites, daquilo que é dentro e do que se encontra do lado de fora de todas as coisas.

Deu-se ordem para esculpir tudo o que é invisível.

Iniciou-se o trabalho dando origem a todas as insignificantes dimensões e às mais incomensuráveis amplitudes, a tudo aquilo que não se entende e se questiona criando-se a ilusão de todas as existências.

Nada do que acontece poderá ser antecipado, nado do que aconteceu pode ser modificado e nada do que acontecerá se encontra escrito em alguma das pedras geradas por essas primeiras lamas de onde tudo se criou.

O mágico tapete começou a ser bordado sem tear ou artesão.

Muitas energias fluíram dessas lamas iniciais. Os sentimentos e as forças contidas em todos os bens e em todos os males. Os vazios que colam no éter as maiores de todas as pedras. Do nada tudo acabou por ser retirado passando a fazer parte do lado de fora dessa entidade inicial. E também esse grão infinitésimo de unidade foi destruído para dele ser retirado o interior e dar início à escrita do primeiro de todos os poemas. A primeira palavra da primeira de todas as histórias ia, finalmente, ser escrita na mais afastada e inóspita das regiões.

Um fogo intenso ardeu no interior desse grão invisível, dessa pedra gerada no coração das lamas iniciais. Desse lume se cozinhou o bisavô de todos os tempos.

Nasceu sábio e asceta como mais nenhuma entidade. Colocou-se imediatamente do lado de fora desse pequeno grão absorvendo, de um só trago, toda a energia.

As escuridões de todos os vazios desapareceram, grandes clarões foram concebidos por esse súbito desequilíbrio causado pelo bisavô de todos os tempos. Ficou desregulado tudo aquilo que não tinha acontecido.

A razão para todas as inexistências foi finalmente derrotada. O fluxo gerado por essa instabilidade fez com que tudo, finalmente, pudesse ter o seu início.

E tudo aconteceu ao sabor das ideias desse primeiro jogador. Voando no infinito iluminado, cavalgando nessa infinitésima partícula de energia que o gerou, o bisavô de todos os tempos tornou-se o primeiro dos jogadores. De pena na mão, a uma velocidade assombrosa, escreveu todas as histórias dos primeiros mil Benzerinaguis. Cada uma dessas histórias ficou gravada nas luminosas paisagens de energia por onde viajou. Descreveu todos os silêncios, todos os símbolos de que esses silêncios se alimentaram e todas as viagens realizadas para os cultivar. O longo tempo em que escreveu as primeiras duzentas e oitenta mil histórias deu origem aos espaços ocos onde os silêncios habitam.

Quinhentos milhões de anos-luz depois o bisavô de todos os tempos ocupou-se da descrição de todos os ruídos e de todas as viagens realizadas para os cultivar. Esse longo tempo em que escreveu essas mais de cinquenta mil histórias deu origem a todas as misteriosas entidades subterrâneas que ele próprio baptizou de universos.

E a música aconteceu, surgiu milagrosa do seio da mais perfeita das histórias que o bisavô escreveu acerca de estranhos ruídos que ecoavam em corpos transparentes, tecidos com a mais fina das linhas sagradas do mágico tapete celestial.

E da música primeira que se escutou, nasceram as restantes histórias que o bisavô se encarregou de perpetuar desde esse momento até ao instante em que as forças lhe deram ordens para descansar. O bisavô já não as considerava como suas pois esses misteriosos sons passaram a comunicar-lhe todas as palavras das histórias.

Foram por ele descritos todos os poemas, todas as lágrimas e todos os sorrisos de que se alimentaram e todas as viagens que foram realizadas para os cultivar.

Durante esses primeiros mil Benzerinaguis, as luminosas paisagens de energia cresceram e atingiram proporções infinitas, eternas e indestrutíveis, apesar de permanecerem misteriosamente leves, tão leves como o peso das primeiras lamas criadoras.

Educadamente, o bisavô de todos os tempos decidiu descansar após concluir a última das histórias do seu milésimo Benzerinagui. Pediu ajuda à infinitésima partícula de energia que o gerou para que as personagens, os espaços e os tempos de todas essas histórias pudessem ganhar vida própria.

E assim acabou por acontecer, numa explosão majestosa. Todas as histórias se espalharam ao longo da dimensão iluminada por onde tinham viajado.

Larniki foi essa dimensão iluminada onde a primeira de todas as histórias se contou. Nasceu da inspiração do bisavô de todos os tempos, nasceu da necessidade que esse artífice sentiu em criar todas as histórias e até a primeira.

Larniki foi aquele onde foram escritas as primeiras histórias, como se de uma pedra se tratasse. Ele foi onde os primeiros tempos, os primeiros sonhos e os primeiros heróis ficaram arquivados. Ele passou a ser parte desses tempos, parte desses sonhos e ganhou as dimensões de todos esses primeiros heróis. Entendeu as raízes de todos os sofrimentos, as cores de todas as esperanças e os ciclos de todos os elementos. Escolheu, com perícia, as pedras mais sagradas e foi construindo, ao longo de muitos milhares de anos-luz, todas as montanhas de todas as pedras luminosas que saíram da pena do bisavô de todos os tempos.

Esses universos receberam as pedras onde se esconderam as palavras dos primeiros mil Benzerinaguis. Serão necessárias as vidas de outras tantas personagens para se entender a verdadeira dimensão desta criação inicial.

Larniki resolveu aparecer neste momento, como antes decidira aparecer menino-pássaro, perdido numa existência sem sentido.

Larniki fornecerá as asas ao sobrinho Hannibas, conforme as recebeu das mãos apaixonadas da menina princesa, conforme leu nas primeiras histórias que lhe foram gravadas na existência luminosa.

Para que os momentos se perpetuem tal como foram inicialmente construídos pela imaginação prodigiosa do bisavô de todos os tempos, Larniki nunca conhecerá as raízes que estão na origem das suas existências. Apenas sentirá, por breves instantes, o calor inicial dessas viagens. Entenderá, por breves instantes, as palavras escondidas ao longo das pedras dos seus diferentes destinos. O poder guardado nesses momentos dar-lhe-á sensatez infinita e uma capacidade invisível que o acompanhará em cada uma das suas viagens.

Os cavaleiros já alcançam com a vista a cordilheira sagrada de Wawaghan. Daqui a três dias serão por ela recebidos. É lá que se encontra escondida, na primeira de todas as pedras, a primeira palavra de todas as histórias.

Larniki sabe-o porque já foi a folha em branco onde essa primeira história se contou.


Hoje não se escreve um poema

Nem se dá luz a nenhum pedaço de história

Hoje nada se entende

Nada se questiona


Os vazios colaram no éter

As maiores de todas as pedras

Do nada tudo se criou

E a existência colou-se

Ao lado de fora desse imenso nada


O invisível explodiu

Do seu interior se retirou

O primeiro dos poemas

A primeira das palavras

O bisavô de todos os tempos


E a razão para todas as inexistências

Foi finalmente derrotada



domingo, 27 de novembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 16


22 de Novembro 2011


Descobrir um sonho no centro do reino. Que comparação podemos fazer entre estes planaltos de agora e os que anteriormente aqui existiam?

Os viajantes distanciaram-se dos vestígios de destruição, deixaram os rastos de morte dos campos de Treghirkh e o odor que emanava das lamas e dos destroços espalhados pelos seus terrenos estéreis. Estes territórios que permitem a ligação desde os montes Serenos até ao centro do imenso império, não parecem ter sido tão afectados pela fúria do dragão. Aqui o Marthiris domina a paisagem, o gigante serpenteia dando vida, fornecendo caminhos e soluções, enriquecendo as populações que sem ele dificilmente sobreviveriam. As distâncias, assim como o clima húmido e abafado, criam enormes dificuldades aos diferentes povos da grande região central.

O império desenvolveu-se por influência destes corajosos guerreiros, com eles cresceu e deles ganhou a sua força, o seu dinamismo e a sua coragem. Muitas foram as cidades-estado que cresceram junto às margens do Marthiris. São elas que constituem a esperança do reino. Ao norte do lago do Medo, antes de se alcançar a margem sul do lago Nhaguk, encontra-se a cidade estado de Nadhiris. É aqui que a comitiva irá descansar por alguns dias.

Os habitantes recebem o futuro rei serpente e toda a corte com imensa alegria. Hannibas, que permanecera em silêncio os últimos dias da viagem, não consegue evitar um rasgado sorriso. O império que herdou continua vivo, esperançoso e destemido.

O rasto das viagens, carregado de paisagens sombrias, foi muito duro para as lembranças dos cavaleiros. Aqui em Nadhiris os sonhos parecem ser de audácia e revelam vontade de mudança. Aqui tudo se encontra como deve ser. A população desde muito cedo marchou para a capital do reino para ajudar na sua reconstrução. Foram daqui enviados muitos trabalhadores, mão-de-obra especializada, arquitectos e sábios empreiteiros. A loucura desse dia em que o monstro atacou reflecte-se no dia-a-dia da população de Nadhiris. Aqui também chegaram muitas das vítimas da tragédia, feridos, desabrigados e muitos desalojados encontraram um refúgio. São muitas as histórias de infortúnios que se escutam pelas ruas e avenidas desta cidade bastião. Nadhiris transformou-se num dos principais portos de abrigo para os que sentiram de perto o bafo negro do dragão.

Hannibas sente crescer uma força invisível dentro de si. A população recebe o futuro rei serpente num estado de quase encantamento e ele entende, neste momento, a real dimensão das tarefas que o esperam. Nos olhos de todos percebe-se uma esperança quase divina, lê-se a dimensão dos desgostos, das agruras e das mágoas passadas, tudo misturado com uma lealdade e um sentimento de orgulho só possível a quem sabe fazer parte deste império. Lançam-se palavras aos céus, tão alto que se escutam até nos montes Serenos. São palavras de incentivo, um grande estímulo para o jovem Hannibas. Após os últimos dias de viagem, estas imagens colaram-se às memórias de todo o séquito e aplacaram muitas das recentes recordações.

Em Nadhiris se repousa.

Em Nadhiris se procede ao reabastecimento.

Em Nadhiris se retemperam as forças.

Os animais são alimentados e um novo ânimo cresce nestes dias.

Em Nadhiris, Hannibas resolve terminar com os silêncios. Ao fim do terceiro dia de descanso, véspera da partida para a etapa final da viagem, o príncipe retoma com Larniki a conversa interrompida.

- Boa-noite tio. Amanhã, quando partirmos, nada será como dantes. Estes dias fizeram-me pensar. Entendi realidades que nunca tinha imaginado. O nosso povo é grandioso e acredita que eu lhes posso facultar aquilo que desejam e muito do que agora necessitam. É preciso voltar a reerguer as cidades e vilas destruídas, revigorar os campos estéreis, repensar as comunicações entre muitas das províncias que foram modificadas pela nova geografia dos terrenos. É necessário reconstruir as muralhas das fronteiras destruídas e fazer com que a esperança volte a aquecer os corações de todos os povos do império de Chover. As pessoas falaram-me com os olhos, com o coração e com os gestos dos corpos. Os mais jovens falaram-me com sorrisos e acenos e os idosos com as mãos, as vénias e as expressões dos seus rostos.

Larniki manteve-se de costas para Hannibas, sentado junto a uma mesa improvisada no centro da grande sala de recepções. Ouviu as palavras do sobrinho, sem nunca se voltar, e deixou-o desabafar.


25 de Novembro 2011


Nasceu o dia, nasceu uma nova esperança na cabeça do futuro rei serpente.

Por muito tempo que passe, por muitos sonhos que se concretizem no futuro reinado de Hannibas, tudo tem de ter o seu início, um princípio, um momento em que a luz se sobrepõe às escuras nuvens do desalento.

A história do futuro rei começa aqui, marcada com as suas curtas palavras, antes de avançar rumo às montanhas sagradas de Wawaghan, onde lhe será fornecido um treino intenso e obterá todas as lições necessárias ao seu futuro.

O seu destino fica aqui traçado. E o povo reagiu como Larniki imaginou.

Milhares vieram dar-lhe esta sentida mensagem de esperança. Hannibas entendeu que a sua simples presença foi suficiente para fazer mudar os rostos daqueles que o vieram saudar. A sua presença é suficiente para fazer aquecer os corações dos que nele acreditam. Muitos dos que ali se deslocaram quase não tinham energia mas substituíram-na por um fervor e uma devoção quase infinitas. Os rostos transformaram-se e a alma do futuro rei ganhou uma nova chama.

Recordou os dias em que o seu pai regressava vitorioso das batalhas, e em particular, daquela em que ficaram definitivamente delimitadas as fronteiras da província de Wirwihneda, aumentando o domínio e a influência a Nordeste do vasto império de Chover. Estes povos sempre foram os mais desprotegidos de todos os povos do reino pois eram os que se encontravam mais afastados da capital do império. Lakis vivia preocupado no estudo das estratégias defensivas para estes povos do Norte e o seu grande interesse acabou por resultar na épica batalha contra o clã dos Majhurks, grandes aliados de todos os inimigos de Chover.

Em menos de meio ano, Lakis planeou e executou a maior marcha de generais e de tropas alguma vez vista em toda a história do império. Era clara a vontade do rei serpente. Atacar os inimigos antes que estes crescessem em poderio bélico e na capacidade estratégica. Antecipou-lhes os intentos. Manteve em segredo o avanço das tropas rumo ao Norte por formas tão misteriosas que ainda hoje assim permanecem. Reforçou as guardas de todas as cidades-estado ao longo do processo e desenvolveu técnicas de combate muito inovadoras com o apoio dos seus abnegados generais. Minou muitos dos impérios inimigos com notícias e histórias falsas acerca de questões sensíveis da vida da corte. Desenhou fragilidades e fraquezas onde a força e a coragem cresciam, alimentou muitas mentiras sobre as relações de poder entre os seus conselheiros e descreveu doenças e mil maleitas que a ele e à família iam consumindo. Cedo os inimigos acreditaram numa inédita conjugação de factores que em muito penalizavam o grande império. Se assim continuasse a acontecer, era fácil invadir avançando pelas fronteiras mais remotas de Chover, e as de Wirwihneda foram sempre as mais apetecíveis.

Mas as armadilhas desde há muito que ali se encontravam montadas e um após outro, todos os impérios invasores foram derrotados. Ficaram apenas as tropas vermelhas dos líderes Majhurks. Cercados pelos lagos a oeste, pelo Akorkh mais a leste e pelas tropas de Chover a norte e a sul, muitos Majhurks acabaram por se render apesar de alguns milhares se terem lançado das altas falésias para o mar. Estas foram as últimas batalhas travadas pelo seu pai e demonstram bem a ímpar visão do grande Lakis, último rei serpente de Chover.

Novas e poderosas alianças foram redesenhadas por toda a província de Wirwihneda. O império cresceu e acrescentou grandes regiões aos seus domínios, estendeu-se mais para nordeste até onde os rios Wirwih e Neda se fundem. Vai até onde estes desaguam no grande mar de Akorkh no golfo do mesmo nome, na grande cidade de Sirbhit.

Hannibas recorda-se dessa chegada do pai à capital depois de meses de combate. Estes últimos dias em Nadhiris trouxeram-lhe de volta a memória desses momentos.


Não desejavam regressar

A vontade é a de viver

De reconstruir e de reinar

O povo demonstrou o seu poder


O monstro decidiu destruir

Galgou montes e cordilheiras

Incendiou províncias inteiras


O povo ergueu-se e regressou

Levanta a cabeça e sobrevive

Hannibas tem nas mãos o seu destino

Carrega o mundo às costas

Sem ter para isso a idade

E os sonhos transformados em memórias

De tempos já idos

Com saudade


Sob as ordens do rei serpente

Alargaram territórios

Os homens levantaram as armas

Corajosos guerreiros

Com fervor serviram o Império

Marcharam com Lakis

Rumo ao Norte de Chover


Não desejavam regressar

Só guerrear, pelejar

Só viver

Mostrar ao inimigo

A sua força, o seu poder


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sexta-feira, 18 de novembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 15


18 de Novembro 2011


As pedras de Novembro vão desvendando partes desta história. Dos confins da existência, lá onde o gigantesco vazio perpetua todos os silêncios e todas as verdades, chega tenuemente a mensagem. Benzerinagui será reiniciado. Apenas as sombras e os silêncios terão conhecimento do que originou esta improvável situação. Apagaram as memórias das gémeas. As poderosas Öllin não guardarão um simples grão de areia do sucedido.

Os séculos regrediram.

O tempo voltou ao instante em que os animais avançam com extrema dificuldade, carregando os mantimentos, as armas, os valorosos cavaleiros e seus generais, carregando Larniki e o futuro rei Hannibas até à longínqua cordilheira de Wawaghan.

O céu não desenhará os olhos e o sorriso maléfico das escritoras.

O cinzento chumbo, bem carregado, continua a não dar tréguas aos viajantes encharcados. Mesmo para os padrões deste reino, a quantidade de água lançada dos céus nos últimos três dias foi fora do comum. Trovoadas constantes iluminam o céu com relâmpagos que se multiplicam às dezenas. Os que por cá habitam dizem que assim acontece desde o dia da tragédia. Desde que o bafo venenoso da besta aqui foi sentido essa primeira vez, toda a região tem sido ainda mais fustigada pelas chuvas eternas, por fortes tempestades eléctricas e por violentos ciclones.

Larniki é o único dos viajantes a quem se descobre um sorriso. O seu pensamento consegue voar para outras paragens bem mais aprazíveis.

Larniki compreende todas as marés, compreende os sonhos e os pesadelos e as viagens. O conselheiro vê para além do agora, entende para além dos momentos, compreende os anseios, os medos e as mensagens invisíveis escondidas em cada rosto e em cada uma das expressões de Hannibas. As águas que descem como rios dos céus de Chover fazem-no feliz.

Larniki lembra-se de quando foi o rio, de quando foi a água e foi cada uma das gotas que fizeram crescer o mítico Marthiris. Lembra-se das histórias contadas por cada pedra do imenso leito. Recorda-se do início da viagem onde o rio nasce, de como a paisagem lhe sorria e acenava, recorda-se dos peregrinos e dos seus sonhos. Lembra-se bem de todos os lugares, de todas as aldeias, vilas, cidades e províncias onde habitou. Lembra-se de como tudo começou, do primeiro sonho onde voou livre como um pássaro, de como o sonho o transformou e de como conseguiu transformar o sonho. Lembra-se dos que nele acreditaram, dos mensageiros perdidos que ajudaram a perpetuar a mensagem primeira, dos que ensinou e dos que, como ele, foram peregrinos dos silêncios. Recorda-se dos locais onde estão escondidos os verdadeiros paraísos e como fazer para os visitar, recorda-se do peso da viagem e da leveza insuportável que esta condição lhe impõe. Lembra-se da luz, do frio, das neblinas. Recorda o amor, a ternura e o calor que só um coração de princesa pode transmitir. Recorda-se dos locais que não visitou mas que dizem conhecê-lo. Lembra-se da lua, dos perfumes, das paisagens floridas das montanhas e dos seus eclipses. Lembra-se dos olhos negros da criança que o viu nascer e que o ajudou a esquecer as dores, a loucura e a fome que sentia. Recorda-se dos pássaros e das estrelas, da música eterna que nascia do útero desses silêncios. Recorda o vento que o atirou para os braços de uma menina princesa nas margens sagradas do rio onde nasceu.

De muito longe se vê o planeta em toda a sua dimensão azul.

As nuvens ocultam todos os reinos que o compõem.

O sorriso de Larniki não passou despercebido ao jovem príncipe Hannibas.

- Porque sorris tio? Porque encontras alegria durante a tempestade?

Como um menino perdido das cidades escondidas, o futuro rei desconhece que ainda é um prisioneiro com histórias por decifrar.

- Prometo que te contarei todas as histórias, tal como elas continuam a ser-nos contadas mesmo agora, enquanto caminhamos. Uma certa manhã, uma dessas histórias deu-me a entender que devia ser o mais discreto dos companheiros numa viagem pois só assim conseguiria vencer todos os desafios da desgraça.

Hannibas não compreendeu. São quase sempre misteriosas as palavras do tio.

- E é por isso que consegues sorrir? É porque te vais lembrando das histórias que conheces? E que histórias são essas que conseguem fazer sorrir?

Larniki olhou para Hannibas e respondeu.

- A tua história será um imenso rochedo, como só nos mais altos cumes de Wawaghan se conseguem encontrar. Sorrio porque consigo vislumbrar o rosto do homem sensato, sábio e corajoso em que tu te transformarás. Sorrio porque vejo o império de Chover reerguido, reconstruído, tão poderoso como a imagem do futuro rei serpente. Sorrio porque existem sinais claros de virtude nas tuas palavras e nas tuas inquietações. Sorrio porque a história vai sendo desdobrada conforme me foi contada no fundo do jovem Marthiris.

Hannibas levanta o braço esquerdo bem alto no ar dando ordens para que a comitiva parasse de avançar. Montado com majestade no seu corcel negro, virou-se para o conselheiro. A manta preta, completamente ensopada, brilhou com o reflexo de relâmpago que acaba de rasgar os céus cinzentos de Chover.

- O que o tio me diz é que consegue antecipar as histórias que estão para acontecer? É esse um dos seus misteriosos poderes, adivinhar o que ainda está para acontecer?

Larniki solta uma sonora gargalhada. Desconcertado, Hannibas vira-se para os mais de mil homens que constituem a comitiva. Os seus irmãos, influenciados pela atitude do tio, começaram também a sorrir e acabaram por contagiar todo o cortejo.

A chuva abrandou de intensidade, o céu aplacou a ira e os ventos serenaram.

Uma imensa gargalhada, cantada em uníssono por mais de mil guerreiros negros, ecoa com clareza na paisagem inóspita junto às margens do lago do Medo.

- Nada disto faz sentido tio! Nada disto faz qualquer sentido. Lamento dizê-lo mas nas suas palavras e nas suas histórias não encontro fios de esperança ou sensatez. O tio fala por enigmas, desenvolve estranhas considerações e agora mesmo acaba de dizer que é capaz de prever as histórias do futuro. Não é possível saber acerca do que ainda está por acontecer. Nos próximos dias agradeço que não me dirija a palavra. Necessito desses dias para tentar encontrar algum sentido em tudo o que me disse desde que saímos de Chover.

Num gesto rápido realizado com a mão direita deu ordens para avançar e a comitiva fez-se ao caminho.

Larniki sabe que os próximos dois anos serão feitos destes confrontos pois eles fazem parte do processo de aprendizagem. As mensagens são parte da estratégia e o crescimento do futuro rei depende disso mesmo. Terá como base estes pressupostos de estranheza e solidão.

Hannibas será como a neblina, será como a luz e o calor que derrete a neblina. Crescerá em silêncio como os rochedos, crescerá com o contributo de todas as pedras e de todas as histórias que nelas se escondem, mesmo a primeira. O futuro rei serpente sofrerá derrotas, sentirá medo, incompreensão e a insustentável angústia da solidão. Aprenderá com as suas dúvidas, suspeitará de quase todas as respostas, optará por caminhos errados antes de obter as soluções desejadas.

Não entende porque é este o seu destino e porque é esta a história que escolheram para si.

Não sabe que o seu nome nasceu numa pequena folha branca em forma de triângulo e que esta repousa no tampo verde de uma vulgar mesa de jogo.

Não sabe que o seu destino se joga com outros destinos como o seu, por entre outros heróis de outros enredos com estranhas e imprevisíveis peripécias.

A mesa onde o seu destino se molda é das mais esclarecidas. De todas as mesas de jogo, esta é a mais equilibrada. Ainda ninguém saiu derrotado, ainda não surgiram desistências e ninguém fraqueja ou dá sinais de cansaço.

Tudo o que até aqui aconteceu é menos de metade do início desse destino.

Um destino secreto encontra-se escondido num pequeno rectângulo cor de musgo.

A palavra está escrita num castanho quente e perfumado.

Esta é a quarta palavra.

Esta é a ocasião para usar o mágico rectângulo, aquele que contém o destino dos heróis de todas as histórias, aquele que pode transformar as epopeias e proporcionar a Benzerinagui mais um aliciante momento de emoção.

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sábado, 12 de novembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 14


11 de Novembro 2011


A chuva inclemente, eterna, cai como desde o nascimento do império. Regatos descem serpenteantes por entre os penhascos, transbordam dos leitos e dos sulcos que escavaram no terreno. Poças, que nos dias menos chuvosos pouco crescem, ganham hoje a dimensão de lagos com dimensões generosas. Tornou-se difícil avançar nestas condições. Os cavalos, cansados, deram hoje mais renúncias ao avanço do que em todos os dias já gastos desde a saída de Chover.

Larniki olha para as nuvens cor de chumbo do céu de Trighirkh. A comitiva atingiu a parte mais ocidental da viagem, o lugar onde o novo lago do Medo penetrou na província a sul dos desertos pantanosos. Aqui desenhou o dragão a cabeça e pelo focinho fez sair os bafos venenosos e escaldantes das entranhas. Nada parecia ser capaz de resistir ao poder destruidor dessa besta. As chuvas eternas transformaram as cinzas neste imenso pantanal de negros e de ocres que se colam às pernas e às patas dos animais.

Os olhos e o sorriso malévolo das escritoras surgem a Larniki nesse céu cinzento num brevíssimo intervalo de tempo. O conselheiro real respondeu-lhes com um sorriso de herói e as nuvens ficaram livres nesse momento.

- Benzerinagui! Benzerinagui! – gritou a gémea Öllin quase caindo da poltrona. – Algo nesta mesa não se está a passar de acordo com as sagradas regras do jogo.

Subitamente, sem que nada o fizesse prever, a escritora invocou Benzerinagui por suspeitar de inconformidades às normas da partida. Meste Tzu-Lee-Khan terá de mediar a acusação tornando-se a sua presença imprescindível para a resolução do assunto.

Ninguém suspeita que alguma das epopeias se vá construindo com uma menos nobre arquitectura dos enredos, com incorrectas utilizações das palavras consagradas, com tentativas impróprias por parte de algum dos jogadores de se apropriarem das palavras consagradas dos adversários, das suas linhas de estratégia ou até, mais grave ainda, de darem um uso impróprio às personagens. Os resultados que vinham sendo reportados das diferentes galáxias dos universos conhecidos dão conta de grande satisfação pelas epopeias que se constroem nesta mesa. Se nas restantes vinte e nove mesas de jogo já não se encontram os dez jogadores iniciais e até numa dessas mesas desapareceram sete dos seus elementos, aqui todos se mantém em disputa numa improvável concentração de qualidade que não caiu bem às orgulhosas gémeas escritoras.

- Benzerinagui! Benzerinagui! – o jogo será verificado.

Mestre Tzu-Lee-Khan apenas por uma vez teve de intervir numa idêntica circunstância. Como desfecho da situação, os jogadores foram banidos para todo o sempre pelas poeiras do esquecimento. As palavras e as pedras foram trituradas e de todas as holoesferas se apagaram as memórias e imagens dessas histórias. Ficou apenas registada a ocorrência pela extrema gravidade do sucedido. Não se sabe o seu nome, nem o que aconteceu, nem quem denunciou, nem sequer os motivos da denúncia ou os contornos do acontecimento. A situação estava caída em total esquecimento, apagada de todas as recordações e praticamente de todas as lembranças, e agora esta estranha participação trás de volta a memória desse dia em que o jogo esteve interrompido por nefastas circunstâncias.

O traje cerimonial do Mestre obriga a que todos os participantes se ergam em respeitosa homenagem. As gémeas estão visivelmente perturbadas. Mesmo na presença do Tzu-Lee-Khan não fazem por evitar a conversa nervosa que as une.

- Desrespeitais-me ao não promoverdes o silêncio? Desrespeitais-me ao não apagardes as cigarrilhas e desrespeitais o meu descanso ao invocardes Benzerinagui para participardes uma hipotética inconformidade no jogo? Desrespeitais-me com tamanha sobranceria! O peso do castigo a aplicar será na igual proporção das insolências. Apenas por uma vez foi este jogo interrompido em centenas de milhares de torneios já realizados e dessa única insensata situação resultou a mais drástica das medidas previstas na lei do jogo.

As gémeas pararam com a conversa, apagaram as cigarrilhas e curvaram-se com reverência perante as palavras do Mestre. De cabeça baixa e de mãos juntas e erguidas por cima das cabeças aguardam por mais palavras de Tzu-Lee-Khan.

- A minha vontade é apenas uma! Destruir as vossas histórias, destruir a vossa existência e entregar-vos aos ventos do esquecimento. Contudo, respeitarei os códigos antes de dar cumprimento aos meus desejos e obedecer às minhas vontades.

Este apego à obediência dos códigos do jogo nunca tinha sido um motivo para o Mestre deixar de praticar as suas vontades supremas. Pela primeira vez Tzu-Lee-Khan não conseguiu fazer vingar as palavras primeiras que nasceram na sua razão e não despedaçou em poeiras e cinzas as escritoras. O sorriso velhaco das gémeas apareceu-lhe numa imagem sombria, provocadora, poderosa e maléfica, tal como foi visível nos céus cinzentos de Chover. Sentiu um arrepio como nunca antes tinha experimentado e voltou atrás com essa primeira intenção. O Mestre coreografou gestos rápidos com a mão direita junto aos olhos e à orelha, abanou os dedos com rapidez e fez desaparecer essas imagens e ideias e o seu rosto ganhou um semblante verdadeiramente assustador.

- Como ousais penetrar assim no meu pensamento? Como ousais insinuar a vossa presença arriscando as vidas nessa insignificante mostra de poder? Foi para isto que invocaram Benzerinagui??



11 de Novembro 2011


O salão de jogo encontra-se silencioso e a atmosfera está carregada com o desenrolar dos acontecimentos. Os jogadores parecem estátuas de mármore, fixos nas suas posições de reverência ao grande Mestre. A respiração foi contida, os gestos reprimidos e as palavras aguardam tempos mais favoráveis para que possam continuar a florir.

Sem mais demoras, os cavaleiros desmontam e ajudam as montadas a avançar pelo terreno lamacento. Os corpos dos animais misturam-se com o negrume da paisagem, com as capas negras das vestes dos generais, com a cor de chumbo que se enraíza até aos ossos de todas as almas.

As gémeas invocaram Benzerinagui numa atitude irreflectida motivada pela audácia de Larniki. Uma personagem teve a ousadia de ir muito para além do que se podia imaginar. Ao enfrentar as gémeas Öllin quando estas se introduziram, de forma totalmente desonesta, numa história que não era sua, Larniki quebrou uma das regras mais sagradas do jogo. As criações dos diferentes jogadores não possuem razão, vontade própria, liberdade de acção ou capacidades que escapem ao controle absoluto dos donos dessas pedras. Nenhuma das personagens de nenhum dos jogadores pode agir, falar, suspirar ou até sonhar. As suas acções estão directamente ligadas ao jogador-escritor que lhes dá vida e que as criou.

As gémeas julgavam-se donas e senhoras de todas as histórias. Apareciam, sem aviso prévio, mascaradas com as cores do ódio, do sangue e da vingança em todas as construções que neste Benzerinagui iam crescendo. Destruíam os enredos, alteravam o rumo dos acontecimentos a seu bel-prazer e semeavam por todas as pedras um veneno muito peculiar.

Larniki não podia ter reagido como o fez. Esse momento transformou para sempre o equilíbrio das forças na mesa de batalha. Como foi possível uma insignificante personagem de uma dessas epopeias realizar tamanha proeza? Afinal, que poderes tão improváveis terá Larniki que lhe permitiu a ousadia de enfrentar quem, supostamente, tudo pode fazer acontecer?

A surpresa gerou o reflexo incondicionado, o reflexo deu origem às palavras que motivaram a interrupção. A ordem das coisas encontra-se definitivamente desalinhada.

- Foi para isto que invocaram Benzerinagui? – insistiu Tzu-Lee-Khan.

As mãos das gémeas continuam juntas bem acima das cabeças. Adivinha-se, pelo tom da sua voz, o que vai na alma do Mestre. Os jogadores aguardam a sua decisão, como estátuas de mármore e marfim. As gémeas resolvem finalmente responder.

- Qualquer que seja a vontade do Mestre, ela acontecerá porque nós entendemos que essa terá de ser a sua vontade. Nada nesta história, nada em todas as histórias de todas as pedras acontece por acaso. Tudo acontece porque nós assim o decidimos. A sua presença aqui deve-se, como tudo aquilo que é desenhado nas folhas brancas espalhadas em cada uma das mesas de jogo, à nossa vontade e ao nosso comando. Nada daquilo que tenha para nos comunicar será uma surpresa. Nada daquilo que julga ter para nos castigar será surpresa para nós. Nada do que arbitre, julgue ou decida será surpresa para nós

- E contudo a vossa situação mudou ao invocarem Benzerinagui! – respondeu Tzu-Lee-Khan. – E contudo, uma simples singela personagem de uma das histórias foi capaz de vos atormentar a razão e o juízo. Uma singela personagem mudou para sempre o equilíbrio das forças entre os jogadores desta mesa de jogo. Ameaçou-vos! Colocou em causa o vosso suposto poder e de uma forma muito inesperada. É patético aquilo que vós pensais poder alcançar através desses vossos atributos… – mas o Mestre Tzu-Lee-Khan não conseguiu terminar mais nenhuma frase.

As gémeas desapareceram, transformaram-se numa gigantesca nuvem negra de fumo que envolveu a figura veneranda do Mestre. Um ciclone varreu de todas as mesas de jogo os participantes, as cartas já lançadas, os triângulos brancos com os nomes de todas as personagens principais das epopeias. As mesas e poltronas voaram pelo tecto despedaçado do salão. Os perfumes, o tempo e os rostos de todas as personagens de todas as histórias ficarão para sempre esquecidos. As matérias-primas necessárias para se criarem as aventuras foram despedaçadas, trituradas pela demência das gémeas escritoras que resolveram tudo destruir. Não contentes com o caos provocado, numa total mostra da sua loucura, as gémeas que são a mesma alma em corpos separados, começaram a guerrear uma com a outra. O sangue saiu-lhes pelos olhos, pelas carnes dilaceradas, pelos cantos feridos das bocas destroçadas e pelos escalpes rasgados ao terem arrancado, uma da outra, os longos cabelos que lhes penteavam as figuras. Esta demência durou séculos sem fim e tudo se manteve delirantemente ausente e em fúria até que o cansaço começou a tomar conta das Öllin.

- Quem é esse Larniki da epopeia do reino de Chover? Que poderes extraordinários existem nele que lhe permitiram confrontar a nossa maldade? Não vimos esta surpresa. Como foi possível não darmos conta desta surpresa? Tudo aquilo que destruímos temos de voltar a recompor. Temos de obter as respostas a estas questões que pela primeira vez nos inquietam.

- Esta é uma sensação nova e estranha. Mas ao regressarmos as coisas já não estarão como as deixámos. Foram tantos os séculos em que nos violentámos que já esquecemos muito daquilo que destruímos.

- Ao retroceder ao instante imediatamente antes àquele em que resolvemos aparecer no reino de Chover, evitaremos a resposta de Larniki e não invocaremos Benzerinagui! A partir daí nada disto terá acontecido. A partir desse momento o jogo continuará como até então mas com esta subtil diferença. De agora em diante teremos de nos precaver pois numa das histórias foi criado um poderoso adversário que não obedece a nenhuma de nossas vontades.

- E isso é, por si só, extremamente atractivo!


O sorriso do herói afastou as nuvens

Benzerinagui foi interrompido

As palavras consagradas aguardam

As poeiras do esquecimento

Acabam com o vencido


As palavras do Mestre são escutadas

A sua vontade manipulada

Pelas gémeas poderosas


As personagens não podem ter razão

Vontade

Liberdade

As personagens não podem falar

Suspirar

Sonhar

Só se assim o jogador (o) decidir


O sorriso de Larniki afastou as nuvens

E tudo isto fez acontecer


As gémeas desapareceram

Numa nuvem de fumo

Furiosas

Despedaçaram perfumes

O tempo

As vontades


Uma da outra arrancaram cabelos

Dilaceraram carnes

Choraram sangue

Cuspiram chamas pela boca

Até o cansaço as vencer


E no instante anterior

Momento mais importante

Decidiram as duas reaparecer

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