segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 20




16 de Dezembro de 2011

Chove cada vez com mais intensidade.
Subitamente, e sem que dos céus os sinais dessem aviso, uma chuva diluviana passou a dificultar a própria visão.
Gordas gotas de chuva conversam com Hannibas.
Derretidas em grandes poças de água, as primeiras marcas brancas da mãe montanha começam a pintar a paisagem. O frio é companhia e as roupas voltam a ganhar peso e a colarem-se ao corpo do jovem peregrino como uma segunda pele. É desconfortável caminhar nestas condições, sem apoio, descalço, com a fome a romper e com a tortura de tanta carga transportada às costas.
No meio da chuva gelada, do frio intenso, da sensação de dor e abandono, Hannibas procura dentro de si o ânimo necessário para continuar a viagem. Recorda as estranhas palavras do tio Larniki. Comunicam-lhe, em repetidas frases desconexas, um conforto generoso, uma amena sensação de companhia que surge ao mesmo tempo da chuva inclemente que se abate dos céus carregados de Chover.
- Sorrio porque a história vai sendo desembrulhada conforme me foi contada no fundo da lagoa onde nasce o Marthiris. As pedras que aí se encontram são sábias, são as mais antigas de todas as pedras e são as que terás de encontrar. Como todos os peregrinos do mundo terás de aprender a escutar os sons do teu próprio crescimento. Num momento preciso, todas as memórias te serão retiradas, caminharás vazio, ausente, afastado de todas as realidades e de todos os destinos prováveis. Esse será o momento em que reabrirás a coragem e tentarás descobrir, de novo, quem és. Terás de abraçar a condição sagrada do grande rio da vida, terás de abraçar a condição sagrada do grande rio da vida, terás de abraçar a condição sagrada do grande rio da vida, terás de abraçar a condição sagrada do grande rio da vida.
Hannibas parou, semi-cerrou os olhos, imobilizou-se permanecendo estático por breves instantes.
A poça de água onde os seus pés repousam começa a crescer e ganha rapidamente as dimensões de uma pequena lagoa.
O futuro rei serpente desaparece nas profundezas dessas águas gélidas e cristalinas. Uma importante parte das lágrimas cristalizadas da mãe montanha encontra-se no fundo desta recém-formada lagoa.
O tempo parou, o mundo inteiro parou e a solidão é agora o domínio de Hannibas.
- Será aqui o meu fim, neste início, neste lugar, sem ter sequer compreendido como cá cheguei?
E uma vontade imensa em ganhar asas suficientemente fortes para o poderem resgatar a estas profundezas aquáticas germinou na mente do futuro rei.
Continua a respirar.
As águas invadem o interior do seu corpo, irrompem pelos pulmões, brônquios e bronquíolos, galgam pelas narinas, rejuvenescem e refrescam todas as ideias e limpam-lhe as memórias deste e de todos os acontecimentos anteriores.
As pedras que o recebem iluminam-se num azul iridescente, mal os seus pés tocam o fundo da lagoa. As pernas não são mais o que já foram. As roupas e a carga pesada que transportava já não lhe pertencem. O seu longo e sedoso cabelo deixou de existir. Os olhos encontram-se cerrados e a posição do corpo é igual à de um peregrino asceta e meditativo.
Nada lhe pertence e tudo lhe pertence.
A cor da sua pele vai lentamente adquirindo uma tonalidade azulada enquanto a intensidade do brilho das pedras da lagoa vai aumentando.
Não é mais Hannibas mas ainda é Hannibas.
Todas as suas memórias desapareceram, tal como o corpo físico desapareceu, engolidos por estas águas sagradas.
Este é um dos segredos mais bem guardados da mãe montanha.
Wawaghan cresce em esplendor mantendo os mais ilustres personagens de cada Benzerinagui resguardados de todos os percalços. Parte da sua sobrevivência reside na iniciação destes anjos que mantêm vivas as histórias, todas as histórias que a fizeram crescer.
Wawaghan passa a existir em cada um destes heróis.
Wawaghan existe e existirá em cada história por eles perpetuada até ao final dos tempos, existe nas memórias daqueles a quem as histórias são contadas, existe nas palavras dos anciões leitores e em todos aqueles que por eles são ensinados.
Wawaghan existe desde o nascimento da primeira de todas as histórias, desde que esta ficou arquivada na primeira de todas as pedras, ínfima parcela infinita da própria cordilheira sagrada.
Enquanto a água e a cor azul transformam definitivamente o corpo de Hannibas, o tempo não existe.
Os jogadores deste Benzerinagui ficam esquecidos, são transformados em estátuas bizarras de um estranho museu.
Tudo fica cristalizado neste momento.
O fumo, as palavras que se acrescentavam às histórias de todos os jogadores ainda qualificados, os odores, os perfumes, todas as ideias desse ínfimo instante, as sombras, os avanços e recuos dos enredos, de todos os enredos e de todas as epopeias.
Tudo fica cristalizado neste momento.
As ondas inter-galácticas que transmutam as histórias em acontecimentos.
O imenso vazio por onde são transportadas até as mais longínquas holoesferas deste universo.
Tudo fica cristalizado nesse momento, até as palavras de Larniki.
- Terás de abraçar a condição sagrada do grande rio da vida, terás de abraçar a condição sagrada do grande rio da vida.
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