16
de Dezembro de 2011
Chove cada vez com mais intensidade.
Subitamente, e sem que dos céus os sinais dessem
aviso, uma chuva diluviana passou a dificultar a própria visão.
Gordas gotas de chuva conversam com Hannibas.
Derretidas em grandes poças de água, as primeiras
marcas brancas da mãe montanha começam a pintar a paisagem. O frio é companhia
e as roupas voltam a ganhar peso e a colarem-se ao corpo do jovem peregrino
como uma segunda pele. É desconfortável caminhar nestas condições, sem apoio,
descalço, com a fome a romper e com a tortura de tanta carga transportada às
costas.
No meio da chuva gelada, do frio intenso, da
sensação de dor e abandono, Hannibas procura dentro de si o ânimo necessário
para continuar a viagem. Recorda as estranhas palavras do tio Larniki. Comunicam-lhe,
em repetidas frases desconexas, um conforto generoso, uma amena sensação de
companhia que surge ao mesmo tempo da chuva inclemente que se abate dos céus
carregados de Chover.
- Sorrio porque a história vai sendo desembrulhada
conforme me foi contada no fundo da lagoa onde nasce o Marthiris. As pedras que
aí se encontram são sábias, são as mais antigas de todas as pedras e são as que
terás de encontrar. Como todos os peregrinos do mundo terás de aprender a
escutar os sons do teu próprio crescimento. Num momento preciso, todas as
memórias te serão retiradas, caminharás vazio, ausente, afastado de todas as
realidades e de todos os destinos prováveis. Esse será o momento em que
reabrirás a coragem e tentarás descobrir, de novo, quem és. Terás de abraçar a
condição sagrada do grande rio da vida, terás de abraçar a condição sagrada do
grande rio da vida, terás de abraçar a condição sagrada do grande rio da vida,
terás de abraçar a condição sagrada do grande rio da vida.
Hannibas parou, semi-cerrou os olhos, imobilizou-se
permanecendo estático por breves instantes.
A poça de água onde os seus pés repousam começa a
crescer e ganha rapidamente as dimensões de uma pequena lagoa.
O futuro rei serpente desaparece nas profundezas
dessas águas gélidas e cristalinas. Uma importante parte das lágrimas
cristalizadas da mãe montanha encontra-se no fundo desta recém-formada lagoa.
O tempo parou, o mundo inteiro parou e a solidão é
agora o domínio de Hannibas.
- Será aqui o meu fim, neste início, neste lugar,
sem ter sequer compreendido como cá cheguei?
E uma vontade imensa em ganhar asas suficientemente
fortes para o poderem resgatar a estas profundezas aquáticas germinou na mente
do futuro rei.
Continua a respirar.
As águas invadem o interior do seu corpo, irrompem
pelos pulmões, brônquios e bronquíolos, galgam pelas narinas, rejuvenescem e
refrescam todas as ideias e limpam-lhe as memórias deste e de todos os
acontecimentos anteriores.
As pedras que o recebem iluminam-se num azul iridescente,
mal os seus pés tocam o fundo da lagoa. As pernas não são mais o que já foram.
As roupas e a carga pesada que transportava já não lhe pertencem. O seu longo e
sedoso cabelo deixou de existir. Os olhos encontram-se cerrados e a posição do
corpo é igual à de um peregrino asceta e meditativo.
Nada lhe pertence e tudo lhe pertence.
A cor da sua pele vai lentamente adquirindo uma tonalidade
azulada enquanto a intensidade do brilho das pedras da lagoa vai aumentando.
Não é mais Hannibas mas ainda é Hannibas.
Todas as suas memórias desapareceram, tal como o
corpo físico desapareceu, engolidos por estas águas sagradas.
Este é um dos segredos mais bem guardados da mãe
montanha.
Wawaghan cresce em esplendor mantendo os mais
ilustres personagens de cada Benzerinagui resguardados de todos os percalços.
Parte da sua sobrevivência reside na iniciação destes anjos que mantêm vivas as
histórias, todas as histórias que a fizeram crescer.
Wawaghan passa a existir em cada um destes heróis.
Wawaghan existe e existirá em cada história por eles
perpetuada até ao final dos tempos, existe nas memórias daqueles a quem as
histórias são contadas, existe nas palavras dos anciões leitores e em todos
aqueles que por eles são ensinados.
Wawaghan existe desde o nascimento da primeira de
todas as histórias, desde que esta ficou arquivada na primeira de todas as
pedras, ínfima parcela infinita da própria cordilheira sagrada.
Enquanto a água e a cor azul transformam
definitivamente o corpo de Hannibas, o tempo não existe.
Os jogadores deste Benzerinagui ficam esquecidos, são
transformados em estátuas bizarras de um estranho museu.
Tudo fica cristalizado neste momento.
O fumo, as palavras que se acrescentavam às
histórias de todos os jogadores ainda qualificados, os odores, os perfumes, todas
as ideias desse ínfimo instante, as sombras, os avanços e recuos dos enredos,
de todos os enredos e de todas as epopeias.
Tudo fica cristalizado neste momento.
As ondas inter-galácticas que transmutam as
histórias em acontecimentos.
O imenso vazio por onde são transportadas até as
mais longínquas holoesferas deste universo.
Tudo fica cristalizado nesse momento, até as palavras
de Larniki.
- Terás de abraçar a condição sagrada do grande rio
da vida, terás de abraçar a condição sagrada do grande rio da vida.
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