sábado, 29 de outubro de 2011

MOMENTOS DOIS - 10


28 de Outubro 2011


De quantas gotas de água se fazem as histórias?

De quantos momentos perdidos, de quantas pedras e palavras?

O sol, o raro e pouco sentido sol do reino de Chover, apareceu hoje pelos intervalos que as nuvens resolveram abrir entre si. Sem que as bátegas dessem tréguas, o brilho do astro conseguiu desenhar dois gigantescos arcos coloridos que coroaram os mais altos cumes dos montes serenos. Nem estas pinceladas luminosas de cor conseguem levantar a moral de Lakis Kostarinadis. O monarca evita todos os contactos diários com os conselheiros, com os príncipes, com o herdeiro, com a rainha Argenta, com o irmão Larnikis. Permanece fechado nos mais recônditos aposentos do palácio, os mesmos onde respirou parte dos odiosos venenos largados pelo enorme dragão. Com movimentos lentos e automáticos e sob o efeito nefasto desses odores, a janela do torreão foi ficando cada vez mais próxima, cada vez mais convidativa.

Nesse lugar onde Zaffiris acenou à multidão, nesse lugar onde o delta do Marthiris e os montes serenos desenham a paisagem agora devastada, Lakis descobriu as respostas para o seu padecimento. Tal como Ravehrtathis o trouxe ao mundo, despojado de trajes, de coroas, de ceptros e de títulos, como pássaro aos ventos se entregou.

Pelo intervalo outrora iluminado das eternas nuvens de Chover, brilha intensamente o cruel sorriso das gémeas escritoras. Carregaram os céus com gigantescas lâminas de luz e resolveram compor este concerto de acompanhamento ao último voo do rei serpente. Raios nunca antes vistos, trovões nunca antes escutados, serpenteiam nos céus bailando desenfreados por cima de todo o reino.

Lakis é atingido por um dos milhares de relâmpagos que foram semeados ao desbarato. Antes que o seu corpo abraçasse as pedras húmidas da grande praça da cidadela, a flecha luminosa desintegrou-o e o trovão que a acompanhou nesse momento abriu a capital ao meio desde a praça até ao porto e aos aquedutos mais a norte. Lakis, o grande rei serpente de Chover, não faz mais parte desta história.

As gémeas quiseram desta forma demonstrar a sua maldade e poder. Lakis tinha decidido acabar com o seu sofrimento lançando-se aos ventos gelados que lhe faziam companhia no quarto do torreão. Momentos antes da calçada receber num abraço de morte a queda vertiginosa desse pássaro, as escritoras desfizeram-no em pó, em luz e esquecimento.

- Somos nós quem mandamos nesta história! Somos nós quem decide o quem, o como e o porquê de todas as histórias deste jogo! Se nos aconteceu esta improvável união, esta partilha da mesma mesa de jogo, então ninguém estará a salvo das nossas vontades e dos nossos poderes. Benzerinagui tem os nossos nomes escritos, numa tinta invisível, em todos os envelopes. Nós somos as escritoras mais apreciadas e as nossas histórias são as mais aclamadas e admiradas. São os nossos demónios e os nossos cataclismos que promovem cada vez mais espectadores e milhares de milhões de novas holoesferas são necessárias para dar resposta a esse crescente número de fãs que cresce a cada dia. As nossas hecatombes fazem parte de todas as histórias e é por esse motivo que todas elas nos pertencem sem excepção. E mesmo esta história desenhada com as palavras que saem das pedras deste Outono é nossa também. O sol, as nuvens, os rios, Chover inteiro e as suas montanhas sagradas, os desertos, as planícies e os vales, os monarcas e o tempo sempre instável do reino são nossos e por nós foram criados. Todos os nomes e todas as tribos, todas as distâncias, todos os segredos por revelar, todos os mares, os lagos, os golfos, todas as batalhas de todos os invasores e as fronteiras de todas as províncias, todos foram por nós antecipados. Se cada jogador imagina é porque nós assim o comandamos. Se cada palavra se desenha, é porque assim nós o permitimos. Se cada paisagem, se cada verbo, se cada objecto se revela, é porque nós assim o desejamos. Se este jogo acontece assim, neste momento e neste lugar é porque nós assim o entendemos. Nenhuma personagem se matará por sua vontade. Nós decidiremos os destinos, as formas e os momentos em que cada personagem deixará a história a que pertence. Sairemos virtuosas e vitoriosas, como sempre, no final de mais este Benzerinagui. Ele é nosso pois nós o inventámos. Nós assim decidimos e é bom que nunca o esqueçam. Não interessa qual das duas irá levantar mais um troféu, não interessa, pois somos a mesma em corpos separados. Os ventos, as chuvas, as tempestades e as monções existem porque nós existimos. Não julgues que Wawaghan pode esconder segredos ou poderes pois tal é impossível. Se o Marthiris ainda nasce nos glaciares perpétuos dessas montanhas, se ziguezagueia livre e sem pressas e sem maldade é porque ainda não lhe destinámos um fim ou um outro princípio.

Assim que Zharkhanis se torne novamente visível, mal o coração da montanha deixe de proteger o grande xamã, nada restará em pé neste reino e todas as pedras terão desaparecido.

A história de Chover passará a poeira, a cinza, a luz e esquecimento, será desintegrada e perecerá como o seu extinto rei serpente.


Quantas são as histórias

De quantas gotas se constroem

Com que momentos

E palavras


O sol ilumina as gotas e as palavras

Constrói arcos coloridos

Por sobre os montes serenos


Lakis

Filho de Ravehrthatis voou

Aos montes gelados se entregou


Lâminas de luz

Gigantescos trovões a condizer

Desintegraram em poeira e esquecimento

O grande rei serpente de Chover


As histórias, todas as histórias

Pertencem às gémeas escritoras

À mesma alma vil e poderosa

Dividida em dois corpos separados


Todos os lugares

De todos os momentos

Todas as paisagens

Cada verbo, os objectos

Infinitas personagens

Tudo lhes pertence


Segredos por revelar

Tempestades tenebrosas por acontecer

Pesadelos por semear

Tudo se desintegrará em poeira e esquecimento

Como o grande rei serpente de Chover

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sexta-feira, 21 de outubro de 2011

MOMENTOS DOIS - 9


20 de Outubro 2011


Outubro avança sem se sentir, como uma sombra que se adivinha. Escondido, avança, defendido pelas penumbras até alcançar o seu fim.

O dragão destruidor avançou pelas sombras, como os meses devoradores de pedras, de histórias e de palavras.

Desapareceram tantas palavras como os derrotados de Chover. Milhões foram os castigados, centenas de milhares os mortos e outros tantos os feridos. As palavras desmontadas por toda a parte, desorganizadas pelo poder quase infinito do invasor, deixarão de construir essas histórias. Desta escuridão ensanguentada, deste abominável cataclismo, sairá revigorado em heroísmo e providência o futuro rei serpente de Chover.

Lakis, o governante do vasto império agora ferido, não consegue manter a frieza e o pragmatismo necessários para fazer reerguer das ruínas as cidades-estado aniquiladas. Os recursos naturais a sul dos montes serenos foram severamente afectados. Os vales outrora férteis e tão generosos estão praticamente destruídos. Foram transformados em estéreis pastos lamacentos.

O mar de Centhaurydhis invadiu os terrenos agrícolas, as planícies temperadas, os vastos pomares e todos os territórios de caça. O rei e a família sobreviveram ao violento ataque do dragão mas Lakis não consegue resistir ao que os seus olhos vislumbram. Notícias cada vez mais negras chegam do centro do reino, junto ao coração do lago Nhaguk. O dragão negro repousou por três semanas no centro do imenso reino sem atravessar a fronteira a norte da província. Parte da sua cabeça e do seu bafo hediondo entraram pela zona intermédia de Treghirkh, a Oeste. A cauda escamosa e as patas dilacerantes passaram para lá das linhas orientais da província de Galymiades. Seriam necessários onze dias a cavalo para conseguir cobrir toda a distância do focinho até à última escama negra da cauda do invasor.

Após as três semanas de indolência os terrenos por debaixo da besta ficaram cobertos de cinzas, poeiras e negrume.

Como Setembro e como este Outubro, como as sombras que não se adivinham, o dragão invasor desapareceu ao colo das mesmas penumbras que o largaram neste reino.

Os céus choram e as nuvens ainda gritam.

As gotas pesadas de chuva transformam o leito desenhado pelo denso corpo do dragão num lago do tamanho do Medo. O lago recebeu as águas sagradas do rio Marthiris e recebeu as mais salgadas de todas as águas. Através do novo canal que se formou entre o mar de Centhaurydis e o mar de Akoukh a Leste de Chover, as águas galgaram os terrenos esventrados e alimentaram este gigantesco novo lago em forma de corpo de dragão.

O sul do reino deixou de estar ligado ao território aliado de Althydis. A província de Galymiades foi cortada em três novos territórios tendo um deles ficado fisicamente afastado da verde língua de terreno que fazia fronteira com o império de Althydis.

O centro do reino de Chover só pode ser alcançado se alguém se aventurar nas escuras águas deste novo lago, nessas águas manchadas de um vermelho quase negro. Bem cedo o povo o denominou como lago do Medo. Para evitar essa necessária travessia é preciso avançar em direcção ao Oeste, entrar na zona intermédia de Treghirkh e contornar a cabeça do lago. Para chegar de Akhor até às tribos do lago Nhaguk já não são três dias e meio de viagem mas sim nove a dez dias de jornada.

Lakis envelheceu mais de dez anos no curto espaço de seis dias. Uma avalancha de infortúnios com centenas de milhares de mortos e feridos e a destruição generalizada do seu reino devolveram-lhe os mais ignóbeis pesadelos. Sem que nada o fizesse crer, transformaram-se na dura realidade.

O seu povo orgulhoso, que tanto ama, sofreu um duro revés. O seu reino tão admirado, tão invejado pelos invasores inimigos, sofreu uma contrariedade nunca vista que quase o aniquilou para todo o sempre.


Outubro avança sem se sentir

As palavras saíram derrotadas

Foram desmontadas

Pelo poder do invasor


Férteis vales de campos generosos

Foram destruídos

Foram usurpados

Pelo poder do invasor


O centro do imenso reino

A sul do lago Nhaguk

Foi o leito do invasor


Os céus choram

As nuvens gritam

As gotas pesadas da chuva

Caem no fosso do invasor


Desenhou o corpo na terra

Terra que recebeu o Centaurydhis

As águas salgadas de Akorkh

E as sagradas do rio Marthiris


Assim nasceu

o lago do tamanho do Medo

Desenhado no centro do reino

Pelo corpo negro do invasor

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sábado, 15 de outubro de 2011

MOMENTOS DOIS - 8



14 de Outubro 2011


O dragão atacou sem piedade, sem aviso prévio. As valorosas tropas do rei Lakis nada puderam fazer.

Abrigado pelo início da madrugada, camuflado na escuridão e no silêncio, o animal gelado arrasou por completo as três mais poderosas cidades do reino de Chover. Com uma força indescritível, destruiu as muralhas centenárias da capital, destruiu para lá do porto, para lá dos aquedutos, para lá das estradas a norte e a nordeste. Tudo acabou por ruir calamitosamente com um estrondo do tamanho do reino. As patas do animal caíram depois com toda a fúria no alto da mais bela colina da capital destruindo parte da cidade.

Em Sharkut, na foz do rio Nidishikhan, cravou raivosamente a pata traseira fazendo milhares de mortos. Formaram-se depois ondas gigantescas, tsunamis inimagináveis que avançaram como ondas de choque em todas as direcções. A cidadela oficina ficou reduzida a escombros numa amálgama de destroços, corpos, detritos e poeiras. Ninguém em Sharkut alguma vez sonhara com tamanho castigo.

A cólera odiosa da besta sanguinária tombou ainda sobre Akhor, a cidade que recebe o rio Marthiris antes de atravessar os desfiladeiros dos montes serenos. A pata traseira do animal passou por cima da cordilheira e abateu-se sem piedade em cima da cidade. Apenas alguns membros de dez famílias de Akhor conseguiram escapar com vida deste massacre.

O dragão limpa os dentes com a pata dianteira, transporta restos amputados de corpos até à boca para os engolir, arrasa com a cauda os caudais e os leitos dos rios Syhanuk e Nidishikhan.

Ninguém foi capaz de antecipar esta desgraça. A ruína abateu-se pela madrugada sobre o belo reino. Em plena comemoração dos feitos gloriosos da batalha das quatro madrugadas, numa improvável conjugação de contrariedades divinas, a tragédia apanhou desprevenido o povo guerreiro de Chover.

O dragão alimenta-se com sofreguidão de tudo aquilo que consegue alcançar. As colinas da cidade já não existem, o delta do rio Marthiris foi engolido por quatro vagas sucessivas que o transformaram em lama, tal como aquelas que forram os desertos pantanosos de Kanedh e Ormetsh.

As gémeas Öllin tomaram conta da história. Ainda mal tinham sido colocadas as personagens no tabuleiro de jogo, já o seu poder assume formas demoníacas. As irmãs divertem-se a introduzir com perfídia estes monstros nos enredos. As histórias que consideram mais ameaçadoras são logo assaltadas, por isso, fico honrado com a destruição. Criaram esta gigantesca criatura que surgiu fantasmagórica das profundezas do mais venenoso dos abismos. A sua dimensão é a do próprio mal e desenharam-lhe o medo nos olhos. Todas as pedras, quase todas as palavras foram destruídas. O céu por cima do monstro enfeitou-se com as caras das escritoras.

Enquanto a última gota de tinta alimentar a ponta deste aparo, enquanto as pedras esconderem os acontecimentos, farei frente às mentes demoníacas das duas irmãs, continuarei a fazer crescer luzes e reflexos por cima de todos os fantasmas. Pintarei tudo o que for destruído com todos os que conseguiram esconder-se da devastação arquitectada. Os heróis crescerão bem mais fortes depois de terem presenciado esta alteração da epopeia. São eles que lhe irão prestar todo o auxílio. Por agora, ainda é impossível apagar das cúpulas celestes de Chover as assinaturas das duas jogadoras.

Uma estratégia chega do parceiro à minha esquerda. Terei de dar uso ao objecto atribuído.

Hannibas recebeu como presente dos pais, no dia do décimo sexto aniversário, um pequeno cofre de bronze. Este objecto foi criado para guardar os mais preciosos poderes da Hglira da casa Kostarinadis - Imortalidade e Invencibilidade.

No dia da sua coroação, Hannibas receberá de volta o cofre sagrado. O domínio desses poderes consagrados ser-lhe-á entregue pelas tribos do norte. São elas que recordam a primeira história e são elas que recordam como a montanha-mãe cresceu. Contar essas histórias é tão importante como é importante manter a sua segurança. O cofre encontra-se protegido na grande cordilheira, guardado pelos grandes xamãs. Eles conhecem todas as histórias, todos os truques de todos os jogadores deste e dos anteriores Benzerinaguis, até do primeiro.

Os que sobreviveram ao ataque invisível do dragão aceitarão as tarefas, as missões, aceitarão os sacrifícios, sabem que terão de esconder dos invasores e de todos os monstros estes segredos poderosos da Hglira real.

Depois de Hannibas ser coroado quarto rei serpente de Chover, terá início a reconstrução do império, terá início a reunificação de todas as cidades-estado, reabilitar-se-á a confiança e o orgulho, honrar-se-á a herança de Lakis, de Zaffiris e de Rakis Kostarinadis.

Enquanto tal não é possível, o dragão alimenta-se da destruição provocada sem ousar avançar para as montanhas a norte onde reina Wawaghan acima de todas as entidades. Estas criações geladas não seriam bem recebidas e as gémeas escritoras sabem como evitar esse confronto.

O cofre de bronze foi entregue ao cuidado de grande xamã Zharkhanis. Encontra-se arquivado algures num dos picos sagrados da grande montanha-mãe onde só ele o pode manejar.

Hoje, nesta triste madrugada, foi retirado por Zharkhanis do coração das pedras onde o guardara.

Este é o momento de acordar!


O dragão vestiu-se de madrugada

Camuflou-se de escuridão

Arrasou o centro e o sul do reino

Com as patas semeou destruição


Espumou raiva

Alimentou-se dos corpos

Dos destroços


Os leitos dos rios desapareceram

O mar aliou-se ao monstro

O delta do Marthiris é deserto

De lamas

De corpos

De lágrimas de sangue

Onde as colinas de Chover se derreteram


Enfeitou-se o escuro céu

Com o rosto sorridente das escritoras

O mal quis desta forma comparecer

Em Wawaghan se esconde a história primeira

Zharkiris invoca do cofre milenar

Os mais preciosos de todos os poderes


Agora é o momento de lutar

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segunda-feira, 10 de outubro de 2011

MOMENTOS DOIS - 7


10 de Outubro 2011


Ao quinto dia as viagens do Benzerinagui prometem uma série brilhante.

As recordações cruzam-se por todas as histórias, as palavras vão sendo lavradas com rigor, as folhas recebem com prazer os enredos e as personagens. Os perfumes ficam mais suaves. Apenas o calor teima em não serenar.

Do alto da terceira colina da capital do reino de Chover vislumbra-se uma ímpar paisagem de singular beleza. Suas altezas reais, Rakis Kostarinadis e Warwinyhia de Althydis e Kostarinadis, decidiram que seria aqui construída a sua capital. Levantaram-se então as grandes muralhas, todos os palácios, os santuários e as imponentes bibliotecas e também os recintos onde se celebram os grandes jogos da casa Kostarinadis. Ainda hoje se continuam a aumentar as muralhas junto ao porto da cidadela, para lá dos grandes aquedutos que serpenteiam pelas entradas a norte e noroeste da capital.

As muralhas cresceram muito para além da estrada para a zona intermédia de Treghirkh. Foram crescendo até a ramificação que leva aos povos dos vales a sul dos montes serenos. As muralhas são vitais para defender o reino dos ataques dos povos inimigos. Segundo relatos que chegam das tribos de Wawaghan e das que habitam junto aos vulcões do nordeste do país, na província de Wirwihneda, os ataques são cada vez mais frequentes. Muitas são as vítimas inocentes que resultam destas investidas e tem sido cada vez mais difícil travar os invasores. É nítida a vontade que demonstram em avançar para sul do território. Mais tarde ou mais cedo conseguirão montar acampamentos estratégicos ao longo do rio Marthiris e a capital deixará de estar em segurança.

Muitas são as sombras que pairam do Norte e do Oeste.

Os invasores preferem arriscar e fazem-se ao mar perigoso e atribulado do golfo de Treghirkh. Desta maneira conseguem evitar os desertos pantanosos ou a passagem pelos exércitos que controlam toda a zona intermédia.

Durante o reinado de Zaffiris, o segundo grande rei serpente do reino de Chover, alguns bárbaros marinheiros foram capazes de se aventurar e desembarcaram junto à foz do rio Syhanuk. Foi o mais próximo da capital que tribos invasoras alguma vez conseguiram fazer-se chegar. Entre o leito dos rios Syhanuk e Nidishikhan, disputou-se um violento combate que quase feriu de morte o grande monarca. Esta batalha passou a ser conhecida como a batalha das quatro madrugadas. Durante a quarta noite dos conflitos, as tropas fiéis a Zaffiris cercaram os cerca de cinco mil marinheiros Saibhytas e os mais de mil mercenários Galibhythas que com eles tinham forjado aliança. De vestes e corpos tingidos de negro, de caras negras e máscaras da cor da madrugada, em uníssono, as tropas de Chover obedeceram às ordens lançadas pelo generalíssimo Abdini Al Faryhi, grande campeão do reino. Milhares de setas embebidas num venenoso néctar paralisante voaram sibilantes na direcção dos invasores. Por mais seis vezes assim aconteceu até que praticamente nenhum Saibhyta ou Galibhytha se manteve de pé.

Os vencidos foram enviados como mão-de-obra para campos de trabalho em Althydis, em Galymiades, para os grandes lagos do rio Marthiris e ainda para as obras das muralhas na capital do reino de Chover.

As embarcações e o espólio da batalha foram transportados para Sharkut, a cidade-estado na foz do rio Nidishikan, a cerca de três dias de viagem de Chover. Nesta cidade portuária fundem-se ainda hoje os metais para a construção de munições e de escudos de combate, restauram-se e fabricam-se armaduras, constroem-se e equipam-se as máquinas de guerra como as novas torres de combate, reedificam-se as paliçadas e recupera-se todo o armamento que as tropas de Chover necessitam para manter o reino preparado para rechaçar os inimigos.

Zaffiris chegou a Chover após ter sido ferido com gravidade por uma arma de fabrico Saibhyta. O povo temeu pela vida do rei serpente. Por duas semanas a morte fez-lhe companhia junto ao leito real.

Zaffiris viu o passado e o futuro e entendeu que este reino que herdou é dos mais belos de todo o planeta e nenhum outro em beleza e riqueza se lhe pode comparar.

A morte acompanhou-o, leu-lhe os pensamentos e ofereceu-lhe o manto aconchegante. Por três vezes o afagou e por três vezes o recusou.

Na manhã do primeiro dia da terceira semana de convalescença, Zaffiris levantou-se e deu dez passos firmes na direcção da janela do torreão. Aí chegado acenou ao povo que se manteve todo esse tempo, na grande praça central da cidadela, em vigília e oração às divindades.

Por todo o reino se festejou com imensa alegria a recuperação milagrosa de Zaffiris, segundo rei serpente de Chover. Os festejos duraram o mesmo número de dias que o rei necessitou para vencer a própria morte.

Hoje é o primeiro dia de celebração do fim dessas batalhas. Em Chover, de quatro em quatro anos, durante trinta dias, festeja-se a vitória dos exércitos de Zaffiris e do generalíssimo Abdini Al Faryhi na grandiosa batalha das quatro madrugadas e festeja-se também a prodigiosa vitória obtida pelo rei Zaffiris no seu combate contra a morte.

De quatro em quatro anos o orgulhoso povo de Chover dedica-se a esta jubilosa loucura. Deixa-se transportar para essas dimensões únicas da invencibilidade e da imortalidade, mesmo que tal só aconteça de quatro em quatro anos e dure o curto espaço de trinta dias.


No alto da terceira colina

O reino fica a seus pés

Aqui cresceram os palácios

Os templos

Muralhas infinitas

Para além de Sharkut

De Treghirkh

Para além dos montes serenos

De Ormetsh


Pelo golfo de Treghirkh navegaram

Saibhytas e Galibhytas mercenários

Ao rei serpente vieram fazer frente

Numa improvável aliança de corsários


Ordens lançadas de madrugada

Envenenaram seis mil dos invasores

Na escura quarta noite do conflito


Zaffiris viu o ontem

O amanhã

Sentiu da morte o manto aconchegante

Três vezes com ternura o afagou

Três vezes essa louca recusou


Ao povo orgulhoso de Chover

Da janela do torreão acenou

Na manhã desse dia improvável

Zaffiris a morte derrotou

Dedicados a jubilosa loucura

O povo orgulhoso de Chover

Descobriu a palavra

Invencível

Descobriu a palavra

Imortal

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sábado, 8 de outubro de 2011

MOMENTOS DOIS - 6


07 de Outubro 2011


No envelope perfumado encontram-se as restantes palavras.

Avancei pelas palavras do verbo e do animal que me ajudaram a decifrar o nome do herói da epopeia. Os jogadores começaram a colocar as palavras na mesa ao lado do pequeno triângulo branco. Como é seu hábito, as gémeas Öllin aguardam, esperam que o ultimo jogador escolha o rectângulo colorido e transmita ao triângulo o nome do herói das aventuras. Lêem os pormenores de todos os gestos, alcançam e ultrapassam a vivacidade e a perícia dos adversários, antecipam-lhes as letras e, dizem alguns daqueles que foram derrotados, conseguem entender o interior de todas as outras histórias e minam-nas por dentro, destroem-lhes a fluidez das narrativas e decompõem-lhes a coerência criativa.

Os avanços e recuos que começam a acontecer nestas crónicas fazem com que os próximos dias sejam os mais aguardados. Ávidos espectadores do grande Benzerinagui juntam-se por todas as galáxias do universo e tentam prever os enredos e aventuras, as tragédias e todas as emoções. Os vencedores da cada uma das mesas serão conhecidos quando as histórias mais estudadas, mais lidas e mais visionadas contenham as suas assinaturas.

Assim que os heróis de cada uma das trezentas histórias acabem de ser colocados por sobre as mesas, os jogadores começarão a comunicar às folhas as palavras escolhidas. Estas serão imediatamente transmutadas para um sistema galáctico de imagens holográficas à escala real. Basta depois que cada espectador e jurado possua uma vulgar holoesfera para as começar a explorar.

Consultam-se com atenção os segredos que cada competidor guardava. Os pilares das histórias começam a ser edificados. Mal se deu ainda uso às primeiras palavras, já o universo já fervilha de contentamento.

O rectângulo vermelho contém a palavra objecto que passará a fazer parte desta história. Pensei no que todos os jogadores preferem. Nas ruas por onde avança o início de todos os segredos, nesses passeios apertados e sombrios, todos gostariam que a palavra objecto pudesse facultar a fama e mais poder ao seu herói. Uma espada Excalibur, um anel de Nibelungo, uma lâmpada de Aladino, uma bola de cristal com poderes divinatórios, um tosão de ouro, um cálice sagrado, uma arca poderosa, um véu da invisibilidade, uma marca azul que controle o tempo, uma porta viajante, uma barca voadora, uma pedra onde caibam todas as histórias, uma janela com vista para a eternidade, uma pena de ganso dourada capaz de escrever a mais bela das histórias.

Antes de ler essa palavra reservada, respiro fundo uma última vez. Procuro nas ideias e na voz que me comanda as mensagens os restantes nomes dos príncipes de Chover.

Após Hannibas nasceu Gorhagahrjani e após este nasceu Leonidas e após Leonidas veio ao mundo Istmarhitnan e a estes quatro se juntaram Ramarhitnan e Ahgirthanis. Fica assim concluída a grande Hglira da casa Kostarinadis do reino de Chover.

Chegou o momento de acrescentar ao início da história o objecto que nos foi confiado. Adio mais um pouco a leitura da palavra desenhada a tinta azul neste vermelho.

Cofre de bronze!

As faces iluminadas das gémeas Öllin ficaram da cor do cartão e nos seus olhos cresceu a cobiça e as íris lhes pintou. Entenderam que o objecto foi uma carta favorável, ao contrário dos seus. Foram genuínas na apresentação do que sentiram ao entenderem a felicidade no meu rosto.

- Na dúvida das jogadas iniciais, devemos escolher e jogar a carta animal. As senhoras ficaram irritadas mas isso será sol de pouca dura. As minhas palavras não constituem um segredo e já não sou jovem nem muito perspicaz. Perdi a habilidade de enfeitiçar e de fazer uma escolha acertada das pedras que me dedico a decifrar. As senhoras adversárias não jogam com sensatez. Mais cedo ou mais tarde os seus enredos criminosos deixarão de fazer parte do gosto dos leitores deste universo. Até lá, façamos de nossas mãos umas esforçadas atletas e saibamos escolher e jogar as cartas acertadas. Caso assim não aconteça, novamente uma destas senhoras sairá sorrindo com o pote vitorioso. Eis que me invadem a mente apenas com o pretexto de mostrar esse poder. O meu animal está em cima da mesa e o meu herói tem nome de cidadela invadida. O meu verbo é a única carta que lhes faculto. Renomear! Eis aqui a palavra contida na pedra e que bordo com as cores da cinza. A minha tinta é desta cor porque na minha história só interessam as palavras, não interessa a distracção que as cores despertam. Que possa o herói da tua história alimentar de esperança e contentamento todas as galáxias deste universo, como aconteceu com a primeira de todas as histórias.


Avançar

Pelas pedras do tempo

Do animal


As adversárias aguardam pelo último jogador

Definem a estratégia

Minam por dentro as histórias

Alimentam-se da sua fluidez.


Todas as palavras

Voarão para longínquas galáxias

Serão lidas

Estudadas

Visionadas

Os segredos deixarão as pedras

O universo fervilhará de alegria


Este é o momento

Avançar

Pela pedra do objecto

Baptizar os restantes príncipes de Chover


O azul pintou de bronze o cofre no vermelho

E a íris corou de raiva e inveja

E a luz iluminou-me o rosto


Escutar as palavras de quem serei

Avançar

Pela pedra do verbo partilhada

Escrita com as cores da cinza

Renomear


Como nessa primeira vez

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