sábado, 31 de dezembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 25



30 de Dezembro e de 2011

Argenta afaga o pequeno gato que traz sentado no colo.
As decisões são tomadas e o tempo não pára para festejar.
Foram chegando notícias da viagem mas com pouca regularidade. Sabia que seria assim. Dois anos passam depressa demais para dar uso à saudade. O peito, esse, reclama. As manhãs nascem como sempre e da janela do torreão o sofrimento ainda a aflige.
Aragenta fala todos os dias com os seus súbditos. Faz questão de estar mais próxima do povo, de escutar as suas sugestões e acrescenta sempre aos seus discursos palavras que escutou e bebeu dos seus fiéis. Contudo, a tristeza, a sensação de perda e muitas outras preocupações são ainda uma constante. Na capital do império houve muitos mortos e ainda há centenas de feridos recolhidos em abrigos improvisados que foram montados nos arredores da cidadela. Estas circunstâncias excepcionais não alteraram em nada o afecto e o respeito do povo para com a sua rainha. Repentinamente e sem aviso, Argenta viu-se privada de todos os seus homens, todos aqueles que mais amava.
Primeiro surge sempre o dever e só depois o seu ser. A rainha mudou após o ataque da besta violenta, mudou como o reino, mudou como mudou a vida de todos os que habitavam ao sul do grande império.
Os jardins do palácio foram rapidamente reconstruídos para servir de exemplo a toda a cidade e também a todo o império.
Argenta sente o tempo parar à sua volta.
As imagens dos últimos doze anos de vida apareceram-lhe à frente num golpe mágico de luz que não consegue compreender. Sente-se leve, muito leve. Uma estranha sensação volta a apertar-lhe o coração. Hannibas corre perigo, sente-o sem saber explicar porquê. A luz branca torna tudo muito claro e transparente. O gato fugiu, abalou para parte incerta. Um mau estar generalizado toma conta do seu corpo. Sente-se tonta e agoniada. O mundo gira à sua volta. Perde o equilíbrio com facilidade e nada parece fazer grande sentido. O brilho dessa luz torna-se cada vez mais forte e Argenta deixa de sentir dor, deixa de sentir o corpo, o chão, deixa de saber onde se encontra. A cabeça pesa-lhe, as cores desaparecem e os sons que escuta são estranhos e distantes. Hannibas pede-lhe ajuda. Reconhece a sua voz muito longínqua.
- Salva a tua vida, filho meu! Foge! Foge para bem longe desse lugar onde te encontras. As sombras perseguem-te, os animais selvagens perseguem-te e ameaçam-te de morte. Tens de encontrar a tua princesa rapidamente pois mais ninguém te poderá ajudar, nem eu te conseguirei prestar auxílio, filho meu! Terás de a conhecer, de a reconhecer no meio da escuridão desse campo onde viajas. Não digas a ninguém que te tentei ajudar pois caso o faças de nada te servirá este conselho.
Argenta não sente as pernas, não sente as mãos, sente que vai desfalecer a qualquer instante.
Acorda no seu leito acompanhada pelas aias de companhia. Passou dois dias a dormir. O cansaço acumulado, os receios, os medos, a imensa responsabilidade, o trabalho de quatro reis que lhe caiu às costas sem aviso nenhum, tudo se reuniu até resultar nesta alteração à constância de seus dias.
A rainha foi derrotada pela primeira vez!

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 24



29 de Dezembro de 2011

Negra é a cor do cartão do sentimento.
Vermelhas, cor de sangue, as letras que constroem essa palavra.
Um longo silêncio vestiu o salão enquanto as gémeas se recompõem. Longe de se darem por vencidas, vão novamente alterar as estratégias. É a terceira vez que o fazem, o que nunca antes tinha sucedido.
Tsu Lee Khan aproxima-se da mesa, silenciosamente, como um animal furtivo.
Os olhos das escritoras chispam de raiva, os cabelos mudam de cor, as palavras continuam presas nas pontas de suas penas e uma aparência de loucura sente-se no perfume que emanam. Estão nervosas, insatisfeitas, o fantasma da derrota empenhou-se em pressioná-las. A arrogância desapareceu e o orgulho está ferido. Um espanto genuíno ilumina-lhes o rosto. As histórias dos seus adversários conseguiram manter à distância as investidas das Öllin e foi-lhes difícil semear o caos e a destruição por essas epopeias.
Tsu Lee Khan prepara-se para anunciar os primeiros jogadores eliminados desta mesa.
Um sabor amargo doce invade-lhes o palato e todos os dez jogadores se sentem prisioneiros do destino.
O chá será servido, como sempre, nesta mesa onde se anunciam as eliminações.
Casca de gengibre, folhas de manga e uma quase imperceptível gota de manteiga de soja derretida, serão adicionados numa magnífica chaleira de água límpida, fervida cinco vezes, para assim poderem ganhar vida. Mas antes o nervosismo das gémeas terá de ser controlado. Nenhum movimento é permitido, nenhum som, nenhum abalo pode interferir na coreografia ritualizada de mestre Tsu Lee Khan enquanto prepara o chá Kalatziki aos jogadores que irão permanecer em jogo.
Nada é feito ao acaso. Os silêncios fazem parte da cerimónia. Os tempos de transição entre a limpeza cuidada das chávenas fazem parte da cerimónia. As danças do bule com o calor das chamas que o aquecem fazem parte da cerimónia. O sobe e desce constante do mel atirado com um perfumado pau de canela para o interior de um segundo bule, cópia exacta do primeiro, onde um conjunto de raras especiarias são acrescentadas com pequenos salpicos imperceptíveis ao olhar, fazem parte da cerimónia. Os tomilhos que ardem como incenso para perfumar o salão fazem parte da cerimónia.
Tsu Lee Khan demora os anos necessários na tarefa e servirá oito taças a oito jogadores. Dois não o irão receber e saberão assim que este não será o seu Benzerinagui.
- E porque não existem flores neste salão? Todos já reparam em tantas normas, tanto respeito, tanta rigidez de processos, tantas rotinas nas entregas das diferentes peças necessárias ao funcionamento deste jogo, na falta de uma iluminação adequada, na virtuosidade arcaica do mestre, na austeridade dos seus movimentos, nos séculos de silêncios, e tudo isto com que propósito? E porque coxeia Tsu Lee Khan? Lembrar-se-á dos venenos que o acabarão por derrotar? Lembrar-se-á da sua infância? Lembrar-se-á de ter sido um jovem mensageiro, um jovem personagem numa história horrível capaz de fazer partir a própria pedra que a arquiva? Ao todo quantas pessoas diferentes existem dentro de si, Mestre?
As respostas não podem ser dadas através de um simples sim ou não. Que consequências trará a todos nós esta verdade?
- Quem quer saber o que não é para aqui chamado? A minha resposta é sempre sim e para isso não necessito de nenhum assistente ou instruções. Mais uma vez o ritual do chá Kalatziki enerva sobremaneira os jogadores, é sempre assim! A dúvida provocou esta estranha compilação de palavras. E eu não coxeio! Arrasto a perna direita desde novo, desde muito novo. Digamos que os sonhos foram, nessa fase da minha vida, vencidos pelos pesadelos. Os espelhos quebravam-se ao reflectirem a minha imagem e eu corria feito louco, fugia em direcção à escuridão sempre que tal acontecia. Acordava, depois, ardendo em febre. Descia as escadas e fugia novamente do meu perseguidor. Refugiava-me na biblioteca, fechava-me lá dentro dias a fio e lia todas as histórias, algumas mais de dez vezes, umas atrás das outras como se de água fresca se tratassem. As janelas do outro lado da vida reflectiam umas luzes sombrias que gritavam de forma assustadora, mas a minha curiosidade ia aumentando cada vez mais. Quando procurava descobrir a razão de tanto sofrimento, deixei cair para trás um sinal que me denunciou. Escondi-me debaixo da grande mesa do salão quando o dragão apareceu. As suas patas estavam sujas com o sangue de todas as vítimas, assim com muitas das escamas negras do seu corpo. Veio cheirar-me e depois, abandonou o salão deixando-me regressar ao refúgio da biblioteca onde voltei a permanecer por mais dez dias. O dragão mudava de cor, como a lua de fases e de vontades. Um acidente aconteceu quando o animal se pintou de vermelho da cauda até à ponta de seu longo focinho. A pata traseira ficou presa, estava partida e impedia-o de avançar. Ficou frustrado, sem forças depois de se tentar libertar, e o meu ódio transformou-se em afeição. Passou a fazer parte de mim como a maré dos oceanos. Os meus medos passaram a ser apenas sonhos maus, não mais dragões ou espelhos quebradiços. O dragão gelou, as patas gelaram e o chá Kalatziki foi por mim preparado pela primeira vez. Servi o chá ao animal que agora se vestia de branco da cabeça aos pés. No outro dia acordou. Coxeava e incumbiu-me de uma tarefa. Uma chuva intensa abateu-se sobre tudo o que mexia. Os gritos voltaram, os espelhos quebraram-se, o sangue foi derramado por toda a parte. Quando regressei a besta negra tinha voltado a atacar. Um exagero de morte e destruição foi por ele semeado e nem as chamas altíssimas de tudo o que foi por ele destruído acalmaram a minha angústia. Não entrarei em mais pormenores. A besta não me matou porque me conhecia. Sabia que numa situação de desespero, eu lhe seria útil. A minha dor tinha sido causada pela minha compreensão e compaixão. Na biblioteca, as histórias que li foram de horror. O meu entusiasmo, enquanto as lia, deixou de existir pois todas elas, sem excepção, tomaram conta da minha consciência. O dragão transformou-me em seu criado. Voltou a pintar-se de negro como a noite escura e todas as perguntas que me colocava eram rasteiras, armadilhas que me lançava para seu próprio proveito. O dragão passou a existir em mim. O seu ar altivo, superior e arrogante, os seus gostos inconvenientes por tudo o que era morte, sangue e destruição passaram a fazer parte de mim. E eu não consegui dar outra resposta que não fosse um sim. Mas não quero mais falar sobre isto. As suas perguntas são as de alguém a quem o receio da eliminação paira sombrio e tenebroso. E esse receio não é inocente, bem pelo contrário. Mas afinal o que deseja, de facto a reverendíssima senhora Öllin? A campainha da derrota soou forte no meio dos seus temores? A sua tez pálida disso dá conta. Conhece o dragão de que vos falo, não é verdade? Talvez gostasse de poder voltar a dar uma palavrinha à sua pérfida criação? Tudo isto porque não sabe se lhe será servida uma simples xícara de chá. E que sentido fariam canteiros de flores num lugar destes? O dragão está adormecido, ou talvez não! O sangue que suja as patas da besta podia muito bem ser o sangue da sua cabeça, arrancada sem piedade pelos dentes da própria criação. Eu li essa história na biblioteca onde me escondia. Mesmo negro, o vosso dragão recordava-se de mim e recordava-se de quem o criou. Os sonhos regressaram e o dragão desenhava-lhes todos os pesadelos. Eu acordava com frequência, pois um desses pesadelos era a minha vontade em possuir o poder do dragão. Partiram-se milhares de espelhos à minha passagem e o dragão branco compreendia a minha frustração. E sempre o sangue e a morte a acompanhar a minha sombra e os olhos da besta traziam-na reflectida como uma bênção. Estava condenado. O tempo condenara-me e o dragão condenado condenou-me e depois pintou-se de branco uma penúltima vez. Pediu-me o quente chá Kalatziki. Depois de o beber, falou comigo. Descompôs-me! O dragão branco sabe de todas as mortes e de todas as dores causadas pela sua negra forma. Não quer mais saber de voar e o chá é a única coisa que o acalma. Transformou-se em dragão vermelho da cor do sangue de todas as vítimas e correu como um louco para as longínquas grutas de Falkarydhum. E os pesadelos voltaram a invadir as minhas noites. Numa delas a besta negra regressou para me visitar. Alienado, esqueceu-se que lhe salvara a vida e quase me arrancou uma das pernas. Após o ataque acalmou, e novamente, enraivecido me atacou. Mas esta história é uma história que as senhoras Öllin conhecem bem, não é verdade? Esta é uma história que vos deve ser muito familiar! Não tiveram dúvidas em quebrar uma das regras básicas deste Benzerinagui ao colocar-me a mim, mestre Tzu Lee Khan, como personagem de vossas histórias. E agora vão ter de esperar, como todos os jogadores desta mesa, pela xícara de chá ou pela sua falta. Isto, para vós, é assunto de vida ou de morte. Como é que alguém pode derrotar as famosas Öllin nesta fase do Benzerinagui? Será uma fractura nas vossas almas arrogantes, mais uma lição que terei todo o gosto em providenciar. E os espelhos que desde essa conversa se continuaram a partir, até hoje, eram fruto da vossa imaginação deturpada e mesquinha. O dragão negro foi facilmente aniquilado! A vossa criação caiu aos pés de um herói em crescimento. Mas isto tudo também vós sabeis. Obtendes autorizações fraudulentas para conseguirem ver os enredos de todas as histórias. A porta encontra-se aberta, a decisão de quem fica e quem sai está na distribuição que agora farei destas oito xícaras de Kalatziki!
O dragão negro saiu raivoso debaixo da mesa de jogo e saltou para o pescoço da primeira das gémeas que se manteve heroicamente branda, muda, com os olhos colados nos olhos da besta. O dragão hesita, dá uma volta inteira ao redor da mesa antes de se recolher novamente para baixo dela. Solta ruídos brutais, assustadores, terríveis, como se todas as vítimas de séculos resolvessem cantar de dor ao mesmo tempo. Tzu Lee Khan avança lentamente até junto das cadeiras das jogadoras. Coloca a mão por debaixo da mesa e puxa com gentileza a cabeça branca do dragão. Está cansado, exausto. O corpo está tão branco que se torna transparente. O enorme animal anicha-se junto aos pés do grande mestre, enrola-se como uma cobra e assim permanece.
Mais nenhum movimento se observou no seu imenso corpo escamoso.

Negra
A cor do sentimento
Vermelhas
As letras que constroem a vaidade

E o herói tingiu de branco
As escamas do dragão
Numa história azul
Que nos invade

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 23




28 de Dezembro de 2011

O ambiente no grande salão conhece nova luminosidade. Os sonhos e os futuros de todas as histórias deste Benzerinagui ficaram cristalizados por séculos de paragem. Uma das histórias continha essa assinatura nas palavras.
O herói necessitou desse momento para crescer, para encontrar o seu destino escrito em letras castanhas, de um tom quente e perfumado, num rectângulo cor de musgo. Mais vulnerável que nunca, esse herói teve um destino que o escolheu.
Todos os elementos se encontram novamente em posição. Ainda há muitos jogadores com planos de vitória agora que o tempo retomou o seu caminho.
As mesas de jogo tremeram, os odores alteraram-se após esta cristalização forçada por uma das histórias. As apresentações de tantos enredos e epopeias deixaram cair muitos criadores.
Ninguém está preparado para ser apontado por Tzu Lee Khan como o próximo a sair. Cada uma destas aventuras ambiciona alcançar a glória da vitória final. Com a clássica elegância de sempre escondida na sua posse e caminhar, o grande Mestre indica mais quatro vencedores de quatro mesas do salão. Como acontece em todas as designações, os vencedores recebem com entusiasmo a grande novidade e carregam as suas brilhantes criações para a nova dimensão do Benzarinagui. As suas mesas iniciais partem-se em mil pedaços e mil músicas tocam para celebrar estas vitórias. Tzu Le Khan indica aos quatro jogadores as suas posições nas três novas mesas do salão. Enquanto as músicas tocam, a comitiva é respeitosamente saudada pelos restantes jogadores através de fortes aplausos.
Os mil pedaços destas mesas juntam-se aos outros estilhaços de mesas e aguardam os restantes fragmentos que a eles se irão juntar. De todos eles se construirá a mesa final deste Benzerinagui, a mesa onde se confrontarão os três últimos escritores.
É irrealista antecipar um prognóstico estando apurados dezanove vencedores iniciais. As três mesas vão ficar mais compostas com mais estes quatro que a eles se juntarão. Sete estão sentados na primeira mesa, seis na segunda e Tzu Lee Khan decidiu fechar os dez lugares da terceira mesa sentando à sua volta três dos quatro vencedores agora encontrados.
Falta ainda encontrar sete vencedores das trinta mesas iniciais.
Uma dessas sete mesas iniciais ainda mantém dez jogadores à sua volta. Como estátuas, rabiscam sem tréguas, acrescentam, uma após outra, palavras e mais palavras aos seus enredos. Acrescentam, uma após outra, viagens e mais viagens aos seus segredos. Acrescentam, uma após outra, paisagens e mais paisagens às epopeias e aumentam o volume dos manuscritos mantendo fiéis seguidores em todos os recantos do universo colados de satisfação às suas holoesferas.
Após tantos séculos passados, com tantos acontecimentos surpreendentes, com tantas irregularidades cometidas, com milhões de avanços e recuos, saltos inusitados nas prosas e nos enredos, é a primeira vez em todos os Benzerinaguis já realizados nesta nova configuração, que nesta fase avançada do jogo se mantêm dez jogadores iniciais numa mesma mesa de jogo. Aqui se reuniram jogadores de altíssima craveira. Os olhos não pestanejam, as mãos não vacilam, as testas não dão sinais de cansaço, as penas não se esgotam nem quebram e os heróis que avançam nestas histórias são iluminados como iluminados são os seus destinos.
Enquanto aplaudem os vencedores saídos de cada uma das restantes mesas do salão, as histórias não param nas suas cabeças, tal é o treino e a sofisticada técnica destes jogadores. As suas personagens lutam, descansam, regressam aos lugares iniciais de cada uma das histórias, dialogam, conhecem-se uma primeira vez, pensam de forma independente de quem as cria, procuram o seu lugar e qual o seu papel nas epopeias. Viajam, vêem os mundos criados com os seus olhos especiais, antecipam muitos dos incidentes, salvam-se de alguns, deixam-se abater por outros, sempre debaixo de uma estranha coloração azul que surge comum a todas as histórias e faz parte integrante delas como se de uma personagem se tratasse. O sangue é também um elemento presente em todas as histórias, sangue de vítimas e de sobreviventes.
Os heróis saem incólumes de todos os desastres, são protegidos pelos seus deuses ou são eles próprios deuses protectores dessas histórias. O tempo avança lentamente, as distâncias percorrem-se vagarosamente, sobem-se os degraus de cada escadaria com todos os cuidados. Os templos são construídos e destruídos antes e depois de cada celebração e a muitos desses heróis foi atribuída uma qualidade notável que os distingue de todos os outros. As doenças não parecem afectá-los, o tempo não parece afectá-los e as suas relações com os restantes personagens são totalmente invulgares. Os espelhos nem sempre reflectem as suas imagens e alguns, quando o fazem, quebram-se com grande facilidade.
Os heróis recebem muitas histórias como presentes, normalmente com finais surpreendentes, autênticas obras de arte que só são oferecidas em ocasiões excepcionais. Alguns heróis passam um terço das vidas a ler essas histórias que recebem de presente, essas extraordinárias combinações de palavras que lhes deixa os ossos fortes como aço e lhes permite não mais se magoarem ou adoecerem. As histórias são fantásticas, saem das penas dos seus próprios criadores, saem dos cartões coloridos e perfumados, aleatórios, e protegem-nos sempre.
Os heróis escondem-se, por vezes, das próprias famílias pois esta prepara-lhes as respostas mais justas para nunca os afectar. Decidem lutar por elas e por elas começar sempre de novo, como se de um milagre se tratasse. E que estranhos personagens são criados em cada uma dessas histórias. Servem para despertar a curiosidade dos heróis e perturbam-lhes estabilidade. O seu lugar nessas histórias acaba por ser quase tão importante como o dos heróis. Ajudam na definição do seu carácter e a encontrar parte das respostas para as dúvidas que carregam. Exageram a realidade dentro de cada um dos enredos e provocam acidentes, originam combates, doenças, desastres, perseguições e frustrações. As viagens e os desafios assim criados servem para colocar inúmeras questões aos heróis das epopeias que põem em risco a própria vida para alcançar os fins a que se propõem.
Os heróis servem de exemplo a todas as personagens. São fortes, conseguem levantar todos os pesos e vencer a maioria dos obstáculos. Fazem-no com uma leveza sem igual. Aumentam os pesos em cada desafio até sentirem o medo percorrer o corpo como um relâmpago invisível. Voltam a vencer mais esse desafio, e outro ainda, e outro também, ficando no final a observar silenciosamente o resultado dessas vitórias. Aos que presenciam as vitórias dos heróis, fica um visível contentamento que se perpetuará até ao fim dos seus dias. Uma recompensa por terem estado no mesmo lugar e à mesma hora em que o herói venceu.
Os heróis permanecem calmos num estado de dúvida permanente. Nestes tempos medíocres em que as pessoas perdem facilmente a esperança, os heróis são tudo aquilo que lhes resta. Alguns heróis esquecem quem os criou, esquecem quem os salvou de uma morte quase certa, a mesma que os tornou assim tão fortes e singulares. E uma estranha coloração azulada parece fazer parte de todas estas histórias.
Alguma confusão é gerada na cabeça de muitas personagens. Sentem-se tocadas pela mesma luz que ilumina os seus heróis.
A cor de ferrugem desenhou no verde musgo o destino deste herói! Um primeiro encontro com esse destino, logo no primeiro dia de viagem, acordou-o do pesadelo em que vivia. Hannibas não é mais o mesmo que era entes desse dia. Não se sente bem por ser quem é. Podia fazer tantas outras coisas se fosse outro, se não tivesse este dom e este destino, se não tivesse que responder a esta chamada. O rumo da sua vida mudou. Tem de avançar devagar pois já não é mais o pequeno príncipe herdeiro Hannibas.
Todos os heróis possuem um ponto fraco que terão de conhecer antes dos seus inimigos. Neste segundo dia de viagem Hannibas terá de compreender qual é o seu. Terá de compreender a essência de quem é. Esquecidas que foram as normais incidências do seu passado e das suas anteriores viagens, recorda agora os seus pesadelos. Recorda o dia da visita do dragão! Recorda os incêndios, os desastrosos momentos passados pelos habitantes de Chover, recorda os ruídos, os gritos e a escuridão imposta pelo invasor. Recorda a sua colecção de receios e deseja estar agora rodeado pelos amigos que deixou na corte. Reconhece onde se abrigam todos os inimigos, todos os falsos profetas e reconhece em todos esses rostos os venenos e os males que provocaram.
Hannibas não desejava este poder que o impele na procura e na destruição dos inimigos do reino. Cobre o seu corpo com um longo manto escuro que lhe tapa a cabeça e as asas invisíveis e segue no encalço desses inimigos. Todos aqueles que mataram sem causa, os que roubaram sem causa, os que ofenderam sem causa são perseguidos por Hannibas ao longo deste segundo dia de jornada. Liberta os filhos daqueles que foram mortos pelo dragão assassino. Liberta as mulheres feitas prisioneiras pelo dragão assassino.
O dragão ataca Hannibas cobardemente, escondido na escuridão e protegido por enormes relâmpagos criados ao seu redor. Hannibas levanta-se, volta atrás, eleva-se muito acima das nuvens escuras que fabricam as armadilhas luminosas que protegem o dragão. Hannibas salta para as costas da besta e agarra-se com todas as forças ao pescoço escamoso do animal cortando-lhe a respiração.
As gémeas Öllin ficam brancas de terror. As gémeas olham na direcção do jogador que escreve estas palavras na folha branca do jogo e enchem um copo de cristal com água fresca. O escritor coloca a folha branca com estas palavras junto ao copo de cristal das adversárias e deixa cair umas lágrimas de satisfação. Os olhos das irmãs são maiores que o do resto dos escritores, como maior é a sua maldade.
O herói das gémeas acabou de ser derrotado e as suas histórias deixaram de fazer qualquer sentido.
Quando acordou, Hannibas ficou sem saber qual o seu lugar neste mundo, perdeu quase toda a esperança até que das entranhas do dragão agora derrotado se escutaram as vozes alucinadas das gémeas escritoras.
A vitória sobre o dragão deixou-o triste.
O seu destino encontrava-se assim escrito.

Hoje não se escreve outro poema
Celebra-se o futuro de todas as histórias


terça-feira, 27 de dezembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 22



27 de Dezembro de 2011

As pedras de Dezembro resolveram fazer parar o tempo.
Nenhuma história cresce, nenhum guerreiro protege o seu monarca, nenhum reino se transforma, nenhuma cor é alterada por nenhuma luz e nenhuma montanha avança em direcção aos céus. Em todos os lugares do universo deixou de existir o tempo, esse profeta que permitiu que o próprio universo fosse construído.
Dessa primeira história se recordam aqui, no fundo desta lagoa, os momentos iniciais onde foram criadas todas as lamas.
Dessa primeira história se recorda aqui, no fundo desta lagoa, a construção do tempo, pedaço de lama suja retirado dessa primeira criação.
Dessa primeira história se recorda aqui, no fundo desta lagoa, que o tempo surgiu para fazer dançar tudo o que dessas lamas fosse construído.
O poder da marca azul toma conta do corpo jovem de Hannibas. Ele, como todas as histórias, como o tempo, como o imenso vazio que tudo une e separa, é parte dessa lama inicial. O futuro rei serpente encontra-se do lado de fora de todas as coisas e nele está arquivada a ilusão de todas as existências, como nesse grão infinitésimo de unidade que foi destruído para dele se retirar a primeira palavra de todas as histórias.
A luz azul intensa arde no seu interior como se de uma pedra se tratasse e Hannibas transforma-se no descendente do bisavô de todos os tempos. Renasce sábio e asceta como nenhuma outra entidade. Coloca-se do lado de fora da lagoa e absorve, de um só trago, toda a energia do universo. E tal como sucedeu com o bisavô de todos os tempos, a razão para todas as inexistências é derrotada e o fluxo do tempo pode, novamente, retomar o seu caminho. Hannibas voa, sem asas, no seu novo infinito iluminado, cavalga nessa infinitésima partícula de energia que o transformou. Cada uma das histórias escritas nos primeiros mil Benzerinaguis está agora gravada em si.
Hannibas conhece todos os silêncios e conhece os símbolos de que esses silêncios se alimentam.
Hannibas conhece todas as viagens necessárias para cultivar esses silêncios.
Hannibas conhece todos os espaços ocos descritos nas primeiras duzentas e oitenta mil histórias.
Hannibas conhece todos os ruídos e conhece todas as viagens necessárias para que todos os ruídos se pudessem cultivar.
Hannibas conhece todas as misteriosas entidades subterrâneas que o bisavô de todos os tempos baptizou de universos.
Hannibas escuta a primeira de todas as músicas.
Hannibas assiste ao nascimento de todas as histórias perpetuadas pelo bisavô de todos os tempos depois desta audição.
Hannibas sorri, chora, viaja, morre e renasce com cada um desses poemas até atingir a dimensão infinita da eternidade.
Hannibas alimenta-se de todas estas luminosas paisagens de energia permanecendo leve, tão leve e tão etéreo como o peso das primeiras lamas criadoras.
Hannibas reconhece Larniki, reconhece o tio ao caminhar ao longo da dimensão iluminada onde a primeira de todas as histórias se contou.
Hannibas compreende que Larniki é essa primeira dimensão iluminada onde a primeira de todas as histórias se contou.
Larniki é aquele onde se escreveram as primeiras histórias, onde aconteceram os primeiros tempos, os primeiros sonhos dos primeiros heróis. Por isso ele entende, como ninguém, a raiz de todos os sofrimentos, as cores de todas as esperanças e os ciclos de todos os elementos.
Hannibas abre os olhos neste momento. À sua frente encontra-se Larniki, tão azul e iluminado como o futuro rei serpente. Nas mãos do seu tio estão depositadas umas enormes asas de um branco imaculado. O conselheiro real entrega as asas a Hannibas, conforme as recebeu das mãos apaixonadas da menina princesa, para que as histórias e os momentos se possam perpetuar tal como foram inicialmente concebidos pela imaginação prodigiosa do bisavô de todos os tempos.
O infinito passou a ser o aqui e o agora, nunca o amanhã.
A estrutura deste Benzerinagui volta a embrulhar os participantes num manto morno, vermelho, tranquilo e protector.
Hannibas encontra-se do lado de fora da lagoa, junto à sua margem, desnudado, com as asas brancas e invisíveis abertas nas costas.
As flores que desabrucharam após a chuva de pétalas azuis, indicam o caminho ao futuro rei serpente.
Milhares de lagoas e lagos iluminam-se uma última vez, transformando a nascente do Marthiris numa gloriosa fonte de galáxias que descem, gloriosas, até ao seu leito, espelho do firmamento.
Hannibas voa baixo, atravessa o rio uma dezena de vezes. Aprecia como nunca o calor que lhe aconchega o peito, o abdómen e as coxas. Esta é mais uma noite em que o milagre do poder azul voltou a ser utilizado. Hannibas reconheceu todas as formas de voar e voa livremente, sem procurar seguir o caminho indicado pelas flores iluminadas.
Tal como Larniki, o futuro rei serpente percebe que esta jornada é acerca da vida e das suas lutas.
Grande parte dela será passada na procura do rumo certo sem que nada ou alguém possa toldar esse horizonte.

No princípio era a viagem
A tensão da primeira etapa
Depois do conhecimento
Depois do peso das pedras
Das feridas

O azul volta a marcar o início
Faz recuar a ansiedade
Estar aqui e agora
Neste momento
É a inspiração
Para alcançar essa meta

Lembrar para sempre
Prosseguir
Fazer brilhar a escuridão
Batendo as asas
Com orgulho

Sobrevoar o Marthiris
Iluminado
Neste momento

domingo, 25 de dezembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 21




25 de Dezembro de 2011

As histórias todas existem em Hannibas neste momento.
O seu novo corpo azul, da cor das pedras do fundo da lagoa onde repousa, ilumina as águas num clarão sem igual.
A neve chegou depressa.
A chuva que deu origem a todos os lagos e lagoas transforma-se num forte nevão que pinta de branco a paisagem.
O frio congela o tempo que ganha uma coloração azul esbranquiçada como a neve e a luz que ilumina as águas cristalinas da lagoa de Hannibas.
- Não sei o que procuro. Pequei, pequei, esqueci-me de como aqui cheguei. Esqueci-me de abrir a alma e revelar os meus segredos. Pequei, pequei, esqueci-me de como aqui cheguei. Esqueci-me das histórias que me contaram, esqueci o cheiro das cinzas das fogueiras para onde as lancei. Pequei, pequei, esqueci-me de como aqui cheguei. Esqueci-me de como são geladas as águas iluminadas e de como a morte parece tão aconchegante. Pequei, pequei, esqueci-me de como aqui cheguei. Esqueci-me de ser a esperança da família e de todo o reino, e de como me comportei. Pequei, pequei, esqueci-me de como aqui cheguei. Esqueci-me do pedido concedido, daquele em que desejei ser eu o rei. Pequei, pequei, e o tempo, prisioneiro no fundo destas águas, trouxe-me de volta a lembrança do perfume de meu pai. Tem sede e não consegue beber, arde em febre, treme, os olhos trazem a íris embaciada, incolor. Ninguém o protege, ninguém o trata. Levanta-se e avança desnudado em direcção á janela do torreão que o aplaude. A mãe montanha abre-lhe os braços, tira-lhe a febre que lhe torna a testa luzidia. A noite escura transforma-lhe o coração em pedra e o corpo em pássaro perdido, e o rei serpente voou, seguindo o chamamento sagrado como um verdadeiro soldado do império. Pequei, pequei, esqueci-me de como aqui cheguei. Crescemos sem saborear o valor desse triunfo. Só uma coisa podia fazer de mim um digno herdeiro deste reino. Existe algo de verdadeiramente errado em mim. Não pretendo sair do fundo desta lagoa tão cedo. O frio lá fora é tanto que congelou o próprio tempo, congelou os corações e o meu está gelado no fundo desta lagoa. Pequei, pequei, esqueci-me de como aqui cheguei. O aconchego de todas as histórias é o que me vai mantendo vivo e vigilante mas ainda não arranjei coragem para escrever a minha própria história. O cheiro húmido da morte tem estado sempre à nossa espera, como uma jovem víbora amaldiçoada. Fazer planos é para quem considera ser alguma coisa e eu apenas consigo ter saudades de meu pai. Não sonhei ocupar o seu lugar e herdar o seu legado, não tão cedo, não sem ter compreendido como aqui cheguei. A tempestade esconde a mãe montanha e a morte surge sorridente ao meu lado no corpo do guerreiro. As pétalas azuis das flores da montanha chovem dos céus em seu redor. O guerreiro jaz inerte, desnudado, no imenso branco da paisagem. Deito o meu corpo azul ao seu lado e assim permanecemos, por séculos, debaixo desta plácida chuva de pétalas azuis. São como memórias, como pedras onde se guardam todas as histórias, e o Marthiris deixa de correr. As suas águas são as minhas lágrimas e são também as lágrimas de todos aqueles que não compreenderam como aqui chegaram, para glória da terra e da sagrada mãe montanha. E mais uma história nasce do coração das pedras azuis que forram o leito da lagoa. O tempo não tem permissão para acordar. Passaria tão depressa, veloz e autoritário, acabaria com a chuva de pétalas azuis que faz nascer, debaixo da neve, todas estas flores. As águas cristalinas são agora gelo azul iluminado onde me encontro cristalizado. Pequei, pequei, esqueci-me de como aqui cheguei. Esqueci-me de todas as histórias e derreti as memórias que ainda existiam no meu coração azul. Desejo umas asas brancas, infinitas asas brancas, poderosas, e desejo que todas as histórias sejam recordadas neste momento.

Corpo azul
Ilumina as águas
Num clarão sem igual
Cresce sem saborear
O valor do triunfo

As águas da lagoa do Marthiris
Gelo de azul cristalino
Cristalizam as memórias
Do coração azul de Hannibas


Pequei, pequei
Esqueci-me de como aqui cheguei
Desejo asas brancas
Infinitas
Desejo que todas as histórias
Recordem este momento

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 20




16 de Dezembro de 2011

Chove cada vez com mais intensidade.
Subitamente, e sem que dos céus os sinais dessem aviso, uma chuva diluviana passou a dificultar a própria visão.
Gordas gotas de chuva conversam com Hannibas.
Derretidas em grandes poças de água, as primeiras marcas brancas da mãe montanha começam a pintar a paisagem. O frio é companhia e as roupas voltam a ganhar peso e a colarem-se ao corpo do jovem peregrino como uma segunda pele. É desconfortável caminhar nestas condições, sem apoio, descalço, com a fome a romper e com a tortura de tanta carga transportada às costas.
No meio da chuva gelada, do frio intenso, da sensação de dor e abandono, Hannibas procura dentro de si o ânimo necessário para continuar a viagem. Recorda as estranhas palavras do tio Larniki. Comunicam-lhe, em repetidas frases desconexas, um conforto generoso, uma amena sensação de companhia que surge ao mesmo tempo da chuva inclemente que se abate dos céus carregados de Chover.
- Sorrio porque a história vai sendo desembrulhada conforme me foi contada no fundo da lagoa onde nasce o Marthiris. As pedras que aí se encontram são sábias, são as mais antigas de todas as pedras e são as que terás de encontrar. Como todos os peregrinos do mundo terás de aprender a escutar os sons do teu próprio crescimento. Num momento preciso, todas as memórias te serão retiradas, caminharás vazio, ausente, afastado de todas as realidades e de todos os destinos prováveis. Esse será o momento em que reabrirás a coragem e tentarás descobrir, de novo, quem és. Terás de abraçar a condição sagrada do grande rio da vida, terás de abraçar a condição sagrada do grande rio da vida, terás de abraçar a condição sagrada do grande rio da vida, terás de abraçar a condição sagrada do grande rio da vida.
Hannibas parou, semi-cerrou os olhos, imobilizou-se permanecendo estático por breves instantes.
A poça de água onde os seus pés repousam começa a crescer e ganha rapidamente as dimensões de uma pequena lagoa.
O futuro rei serpente desaparece nas profundezas dessas águas gélidas e cristalinas. Uma importante parte das lágrimas cristalizadas da mãe montanha encontra-se no fundo desta recém-formada lagoa.
O tempo parou, o mundo inteiro parou e a solidão é agora o domínio de Hannibas.
- Será aqui o meu fim, neste início, neste lugar, sem ter sequer compreendido como cá cheguei?
E uma vontade imensa em ganhar asas suficientemente fortes para o poderem resgatar a estas profundezas aquáticas germinou na mente do futuro rei.
Continua a respirar.
As águas invadem o interior do seu corpo, irrompem pelos pulmões, brônquios e bronquíolos, galgam pelas narinas, rejuvenescem e refrescam todas as ideias e limpam-lhe as memórias deste e de todos os acontecimentos anteriores.
As pedras que o recebem iluminam-se num azul iridescente, mal os seus pés tocam o fundo da lagoa. As pernas não são mais o que já foram. As roupas e a carga pesada que transportava já não lhe pertencem. O seu longo e sedoso cabelo deixou de existir. Os olhos encontram-se cerrados e a posição do corpo é igual à de um peregrino asceta e meditativo.
Nada lhe pertence e tudo lhe pertence.
A cor da sua pele vai lentamente adquirindo uma tonalidade azulada enquanto a intensidade do brilho das pedras da lagoa vai aumentando.
Não é mais Hannibas mas ainda é Hannibas.
Todas as suas memórias desapareceram, tal como o corpo físico desapareceu, engolidos por estas águas sagradas.
Este é um dos segredos mais bem guardados da mãe montanha.
Wawaghan cresce em esplendor mantendo os mais ilustres personagens de cada Benzerinagui resguardados de todos os percalços. Parte da sua sobrevivência reside na iniciação destes anjos que mantêm vivas as histórias, todas as histórias que a fizeram crescer.
Wawaghan passa a existir em cada um destes heróis.
Wawaghan existe e existirá em cada história por eles perpetuada até ao final dos tempos, existe nas memórias daqueles a quem as histórias são contadas, existe nas palavras dos anciões leitores e em todos aqueles que por eles são ensinados.
Wawaghan existe desde o nascimento da primeira de todas as histórias, desde que esta ficou arquivada na primeira de todas as pedras, ínfima parcela infinita da própria cordilheira sagrada.
Enquanto a água e a cor azul transformam definitivamente o corpo de Hannibas, o tempo não existe.
Os jogadores deste Benzerinagui ficam esquecidos, são transformados em estátuas bizarras de um estranho museu.
Tudo fica cristalizado neste momento.
O fumo, as palavras que se acrescentavam às histórias de todos os jogadores ainda qualificados, os odores, os perfumes, todas as ideias desse ínfimo instante, as sombras, os avanços e recuos dos enredos, de todos os enredos e de todas as epopeias.
Tudo fica cristalizado neste momento.
As ondas inter-galácticas que transmutam as histórias em acontecimentos.
O imenso vazio por onde são transportadas até as mais longínquas holoesferas deste universo.
Tudo fica cristalizado nesse momento, até as palavras de Larniki.
- Terás de abraçar a condição sagrada do grande rio da vida, terás de abraçar a condição sagrada do grande rio da vida.
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