28
de Dezembro de 2011
O ambiente no grande salão conhece nova
luminosidade. Os sonhos e os futuros de todas as histórias deste Benzerinagui
ficaram cristalizados por séculos de paragem. Uma das histórias continha essa
assinatura nas palavras.
O herói necessitou desse momento para crescer, para
encontrar o seu destino escrito em letras castanhas, de um tom quente e
perfumado, num rectângulo cor de musgo. Mais vulnerável que nunca, esse herói
teve um destino que o escolheu.
Todos os elementos se encontram novamente em
posição. Ainda há muitos jogadores com planos de vitória agora que o tempo
retomou o seu caminho.
As mesas de jogo tremeram, os odores alteraram-se
após esta cristalização forçada por uma das histórias. As apresentações de
tantos enredos e epopeias deixaram cair muitos criadores.
Ninguém está preparado para ser apontado por Tzu Lee
Khan como o próximo a sair. Cada uma destas aventuras ambiciona alcançar a
glória da vitória final. Com a clássica elegância de sempre escondida na sua
posse e caminhar, o grande Mestre indica mais quatro vencedores de quatro mesas
do salão. Como acontece em todas as designações, os vencedores recebem com
entusiasmo a grande novidade e carregam as suas brilhantes criações para a nova
dimensão do Benzarinagui. As suas mesas iniciais partem-se em mil pedaços e mil
músicas tocam para celebrar estas vitórias. Tzu Le Khan indica aos quatro
jogadores as suas posições nas três novas mesas do salão. Enquanto as músicas
tocam, a comitiva é respeitosamente saudada pelos restantes jogadores através
de fortes aplausos.
Os mil pedaços destas mesas juntam-se aos outros
estilhaços de mesas e aguardam os restantes fragmentos que a eles se irão
juntar. De todos eles se construirá a mesa final deste Benzerinagui, a mesa
onde se confrontarão os três últimos escritores.
É irrealista antecipar um prognóstico estando
apurados dezanove vencedores iniciais. As três mesas vão ficar mais compostas
com mais estes quatro que a eles se juntarão. Sete estão sentados na primeira
mesa, seis na segunda e Tzu Lee Khan decidiu fechar os dez lugares da terceira
mesa sentando à sua volta três dos quatro vencedores agora encontrados.
Falta ainda encontrar sete vencedores das trinta mesas
iniciais.
Uma dessas sete mesas iniciais ainda mantém dez
jogadores à sua volta. Como estátuas, rabiscam sem tréguas, acrescentam, uma
após outra, palavras e mais palavras aos seus enredos. Acrescentam, uma após
outra, viagens e mais viagens aos seus segredos. Acrescentam, uma após outra,
paisagens e mais paisagens às epopeias e aumentam o volume dos manuscritos
mantendo fiéis seguidores em todos os recantos do universo colados de
satisfação às suas holoesferas.
Após tantos séculos passados, com tantos acontecimentos
surpreendentes, com tantas irregularidades cometidas, com milhões de avanços e
recuos, saltos inusitados nas prosas e nos enredos, é a primeira vez em todos
os Benzerinaguis já realizados nesta nova configuração, que nesta fase avançada
do jogo se mantêm dez jogadores iniciais numa mesma mesa de jogo. Aqui se
reuniram jogadores de altíssima craveira. Os olhos não pestanejam, as mãos não
vacilam, as testas não dão sinais de cansaço, as penas não se esgotam nem
quebram e os heróis que avançam nestas histórias são iluminados como iluminados
são os seus destinos.
Enquanto aplaudem os vencedores saídos de cada uma
das restantes mesas do salão, as histórias não param nas suas cabeças, tal é o
treino e a sofisticada técnica destes jogadores. As suas personagens lutam,
descansam, regressam aos lugares iniciais de cada uma das histórias, dialogam,
conhecem-se uma primeira vez, pensam de forma independente de quem as cria,
procuram o seu lugar e qual o seu papel nas epopeias. Viajam, vêem os mundos criados
com os seus olhos especiais, antecipam muitos dos incidentes, salvam-se de
alguns, deixam-se abater por outros, sempre debaixo de uma estranha coloração
azul que surge comum a todas as histórias e faz parte integrante delas como se
de uma personagem se tratasse. O sangue é também um elemento presente em todas
as histórias, sangue de vítimas e de sobreviventes.
Os heróis saem incólumes de todos os desastres, são
protegidos pelos seus deuses ou são eles próprios deuses protectores dessas
histórias. O tempo avança lentamente, as distâncias percorrem-se vagarosamente,
sobem-se os degraus de cada escadaria com todos os cuidados. Os templos são
construídos e destruídos antes e depois de cada celebração e a muitos desses
heróis foi atribuída uma qualidade notável que os distingue de todos os outros.
As doenças não parecem afectá-los, o tempo não parece afectá-los e as suas
relações com os restantes personagens são totalmente invulgares. Os espelhos
nem sempre reflectem as suas imagens e alguns, quando o fazem, quebram-se com
grande facilidade.
Os heróis recebem muitas histórias como presentes,
normalmente com finais surpreendentes, autênticas obras de arte que só são
oferecidas em ocasiões excepcionais. Alguns heróis passam um terço das vidas a
ler essas histórias que recebem de presente, essas extraordinárias combinações
de palavras que lhes deixa os ossos fortes como aço e lhes permite não mais se
magoarem ou adoecerem. As histórias são fantásticas, saem das penas dos seus
próprios criadores, saem dos cartões coloridos e perfumados, aleatórios, e
protegem-nos sempre.
Os heróis escondem-se, por vezes, das próprias
famílias pois esta prepara-lhes as respostas mais justas para nunca os afectar.
Decidem lutar por elas e por elas começar sempre de novo, como se de um milagre
se tratasse. E que estranhos personagens são criados em cada uma dessas
histórias. Servem para despertar a curiosidade dos heróis e perturbam-lhes
estabilidade. O seu lugar nessas histórias acaba por ser quase tão importante
como o dos heróis. Ajudam na definição do seu carácter e a encontrar parte das
respostas para as dúvidas que carregam. Exageram a realidade dentro de cada um
dos enredos e provocam acidentes, originam combates, doenças, desastres,
perseguições e frustrações. As viagens e os desafios assim criados servem para
colocar inúmeras questões aos heróis das epopeias que põem em risco a própria
vida para alcançar os fins a que se propõem.
Os heróis servem de exemplo a todas as personagens.
São fortes, conseguem levantar todos os pesos e vencer a maioria dos
obstáculos. Fazem-no com uma leveza sem igual. Aumentam os pesos em cada
desafio até sentirem o medo percorrer o corpo como um relâmpago invisível.
Voltam a vencer mais esse desafio, e outro ainda, e outro também, ficando no
final a observar silenciosamente o resultado dessas vitórias. Aos que
presenciam as vitórias dos heróis, fica um visível contentamento que se
perpetuará até ao fim dos seus dias. Uma recompensa por terem estado no mesmo
lugar e à mesma hora em que o herói venceu.
Os heróis permanecem calmos num estado de dúvida
permanente. Nestes tempos medíocres em que as pessoas perdem facilmente a
esperança, os heróis são tudo aquilo que lhes resta. Alguns heróis esquecem
quem os criou, esquecem quem os salvou de uma morte quase certa, a mesma que os
tornou assim tão fortes e singulares. E uma estranha coloração azulada parece
fazer parte de todas estas histórias.
Alguma confusão é gerada na cabeça de muitas
personagens. Sentem-se tocadas pela mesma luz que ilumina os seus heróis.
A cor de ferrugem desenhou no verde musgo o destino
deste herói! Um primeiro encontro com esse destino, logo no primeiro dia de
viagem, acordou-o do pesadelo em que vivia. Hannibas não é mais o mesmo que era
entes desse dia. Não se sente bem por ser quem é. Podia fazer tantas outras
coisas se fosse outro, se não tivesse este dom e este destino, se não tivesse
que responder a esta chamada. O rumo da sua vida mudou. Tem de avançar devagar
pois já não é mais o pequeno príncipe herdeiro Hannibas.
Todos os heróis possuem um ponto fraco que terão de
conhecer antes dos seus inimigos. Neste segundo dia de viagem Hannibas terá de
compreender qual é o seu. Terá de compreender a essência de quem é. Esquecidas
que foram as normais incidências do seu passado e das suas anteriores viagens,
recorda agora os seus pesadelos. Recorda o dia da visita do dragão! Recorda os
incêndios, os desastrosos momentos passados pelos habitantes de Chover, recorda
os ruídos, os gritos e a escuridão imposta pelo invasor. Recorda a sua colecção
de receios e deseja estar agora rodeado pelos amigos que deixou na corte.
Reconhece onde se abrigam todos os inimigos, todos os falsos profetas e
reconhece em todos esses rostos os venenos e os males que provocaram.
Hannibas não desejava este poder que o impele na
procura e na destruição dos inimigos do reino. Cobre o seu corpo com um longo
manto escuro que lhe tapa a cabeça e as asas invisíveis e segue no encalço
desses inimigos. Todos aqueles que mataram sem causa, os que roubaram sem
causa, os que ofenderam sem causa são perseguidos por Hannibas ao longo deste
segundo dia de jornada. Liberta os filhos daqueles que foram mortos pelo dragão
assassino. Liberta as mulheres feitas prisioneiras pelo dragão assassino.
O dragão ataca Hannibas cobardemente, escondido na
escuridão e protegido por enormes relâmpagos criados ao seu redor. Hannibas
levanta-se, volta atrás, eleva-se muito acima das nuvens escuras que fabricam
as armadilhas luminosas que protegem o dragão. Hannibas salta para as costas da
besta e agarra-se com todas as forças ao pescoço escamoso do animal
cortando-lhe a respiração.
As gémeas Öllin ficam brancas de terror. As gémeas
olham na direcção do jogador que escreve estas palavras na folha branca do jogo
e enchem um copo de cristal com água fresca. O escritor coloca a folha branca
com estas palavras junto ao copo de cristal das adversárias e deixa cair umas
lágrimas de satisfação. Os olhos das irmãs são maiores que o do resto dos
escritores, como maior é a sua maldade.
O herói das gémeas acabou de ser derrotado e as suas
histórias deixaram de fazer qualquer sentido.
Quando acordou, Hannibas ficou sem saber qual o seu
lugar neste mundo, perdeu quase toda a esperança até que das entranhas do
dragão agora derrotado se escutaram as vozes alucinadas das gémeas escritoras.
A vitória sobre o dragão deixou-o triste.
O seu destino encontrava-se assim escrito.
Hoje não se escreve outro poema
Celebra-se o futuro de todas as histórias