sábado, 29 de outubro de 2011

MOMENTOS DOIS - 10


28 de Outubro 2011


De quantas gotas de água se fazem as histórias?

De quantos momentos perdidos, de quantas pedras e palavras?

O sol, o raro e pouco sentido sol do reino de Chover, apareceu hoje pelos intervalos que as nuvens resolveram abrir entre si. Sem que as bátegas dessem tréguas, o brilho do astro conseguiu desenhar dois gigantescos arcos coloridos que coroaram os mais altos cumes dos montes serenos. Nem estas pinceladas luminosas de cor conseguem levantar a moral de Lakis Kostarinadis. O monarca evita todos os contactos diários com os conselheiros, com os príncipes, com o herdeiro, com a rainha Argenta, com o irmão Larnikis. Permanece fechado nos mais recônditos aposentos do palácio, os mesmos onde respirou parte dos odiosos venenos largados pelo enorme dragão. Com movimentos lentos e automáticos e sob o efeito nefasto desses odores, a janela do torreão foi ficando cada vez mais próxima, cada vez mais convidativa.

Nesse lugar onde Zaffiris acenou à multidão, nesse lugar onde o delta do Marthiris e os montes serenos desenham a paisagem agora devastada, Lakis descobriu as respostas para o seu padecimento. Tal como Ravehrtathis o trouxe ao mundo, despojado de trajes, de coroas, de ceptros e de títulos, como pássaro aos ventos se entregou.

Pelo intervalo outrora iluminado das eternas nuvens de Chover, brilha intensamente o cruel sorriso das gémeas escritoras. Carregaram os céus com gigantescas lâminas de luz e resolveram compor este concerto de acompanhamento ao último voo do rei serpente. Raios nunca antes vistos, trovões nunca antes escutados, serpenteiam nos céus bailando desenfreados por cima de todo o reino.

Lakis é atingido por um dos milhares de relâmpagos que foram semeados ao desbarato. Antes que o seu corpo abraçasse as pedras húmidas da grande praça da cidadela, a flecha luminosa desintegrou-o e o trovão que a acompanhou nesse momento abriu a capital ao meio desde a praça até ao porto e aos aquedutos mais a norte. Lakis, o grande rei serpente de Chover, não faz mais parte desta história.

As gémeas quiseram desta forma demonstrar a sua maldade e poder. Lakis tinha decidido acabar com o seu sofrimento lançando-se aos ventos gelados que lhe faziam companhia no quarto do torreão. Momentos antes da calçada receber num abraço de morte a queda vertiginosa desse pássaro, as escritoras desfizeram-no em pó, em luz e esquecimento.

- Somos nós quem mandamos nesta história! Somos nós quem decide o quem, o como e o porquê de todas as histórias deste jogo! Se nos aconteceu esta improvável união, esta partilha da mesma mesa de jogo, então ninguém estará a salvo das nossas vontades e dos nossos poderes. Benzerinagui tem os nossos nomes escritos, numa tinta invisível, em todos os envelopes. Nós somos as escritoras mais apreciadas e as nossas histórias são as mais aclamadas e admiradas. São os nossos demónios e os nossos cataclismos que promovem cada vez mais espectadores e milhares de milhões de novas holoesferas são necessárias para dar resposta a esse crescente número de fãs que cresce a cada dia. As nossas hecatombes fazem parte de todas as histórias e é por esse motivo que todas elas nos pertencem sem excepção. E mesmo esta história desenhada com as palavras que saem das pedras deste Outono é nossa também. O sol, as nuvens, os rios, Chover inteiro e as suas montanhas sagradas, os desertos, as planícies e os vales, os monarcas e o tempo sempre instável do reino são nossos e por nós foram criados. Todos os nomes e todas as tribos, todas as distâncias, todos os segredos por revelar, todos os mares, os lagos, os golfos, todas as batalhas de todos os invasores e as fronteiras de todas as províncias, todos foram por nós antecipados. Se cada jogador imagina é porque nós assim o comandamos. Se cada palavra se desenha, é porque assim nós o permitimos. Se cada paisagem, se cada verbo, se cada objecto se revela, é porque nós assim o desejamos. Se este jogo acontece assim, neste momento e neste lugar é porque nós assim o entendemos. Nenhuma personagem se matará por sua vontade. Nós decidiremos os destinos, as formas e os momentos em que cada personagem deixará a história a que pertence. Sairemos virtuosas e vitoriosas, como sempre, no final de mais este Benzerinagui. Ele é nosso pois nós o inventámos. Nós assim decidimos e é bom que nunca o esqueçam. Não interessa qual das duas irá levantar mais um troféu, não interessa, pois somos a mesma em corpos separados. Os ventos, as chuvas, as tempestades e as monções existem porque nós existimos. Não julgues que Wawaghan pode esconder segredos ou poderes pois tal é impossível. Se o Marthiris ainda nasce nos glaciares perpétuos dessas montanhas, se ziguezagueia livre e sem pressas e sem maldade é porque ainda não lhe destinámos um fim ou um outro princípio.

Assim que Zharkhanis se torne novamente visível, mal o coração da montanha deixe de proteger o grande xamã, nada restará em pé neste reino e todas as pedras terão desaparecido.

A história de Chover passará a poeira, a cinza, a luz e esquecimento, será desintegrada e perecerá como o seu extinto rei serpente.


Quantas são as histórias

De quantas gotas se constroem

Com que momentos

E palavras


O sol ilumina as gotas e as palavras

Constrói arcos coloridos

Por sobre os montes serenos


Lakis

Filho de Ravehrthatis voou

Aos montes gelados se entregou


Lâminas de luz

Gigantescos trovões a condizer

Desintegraram em poeira e esquecimento

O grande rei serpente de Chover


As histórias, todas as histórias

Pertencem às gémeas escritoras

À mesma alma vil e poderosa

Dividida em dois corpos separados


Todos os lugares

De todos os momentos

Todas as paisagens

Cada verbo, os objectos

Infinitas personagens

Tudo lhes pertence


Segredos por revelar

Tempestades tenebrosas por acontecer

Pesadelos por semear

Tudo se desintegrará em poeira e esquecimento

Como o grande rei serpente de Chover

.

Sem comentários:

Enviar um comentário