quarta-feira, 5 de outubro de 2011

MOMENTOS DOIS - 4



04 de Outubro 2011


O peso do calor sente-se no grande salão.

Nas mesas de jogo pede-se outra temperatura.

Os perfumes causaram estragos em muitos jogadores e esta película não dá serenidade às vontades. Com a concentração afectada e os sentidos desalinhados se abriu o primeiro envelope.

Os selos, cadeados carmins, mantiveram os segredos de todos os rectângulos brancos que foram distribuídos aos trezentos jogadores das trinta mesas. As palavras arquivadas vão ser descobertas pela primeira vez. Comunicarão as suas vontades aos jogadores que com elas terão de construir o primeiro dos enredos.

Cada envelope contém um conjunto de seis palavras. Cada envelope contém um conjunto de seis rectângulos coloridos onde se desenhou o nome de um animal, de um verbo ou acção, de um lugar ou destino, de um objecto, de um adjectivo e de um sentimento. Com essas palavras se construirá a primeira das histórias. Uma epopeia, uma aventura épica ou um drama num único acto. É obrigatório que uma das seis palavras seja escolhida por cada um dos jogadores que depois a colocará em cima da mesa de jogo, virada para baixo. Na altura considerada oportuna, os croupiers se encarregarão de as revelar.

Nesta fase do jogo cada adversário escritor terá de escrever, numa pequena folha triangular, o nome do herói ou heroína da sua aventura. O nome será colocado ao lado do rectângulo colorido com a palavra escolhida. Também este nome será mantido em segredo até que os croupiers os entendam dar a conhecer.

Este é o início do tempo para se construírem as histórias, aliás, esse início aconteceu quando o grande mestre Tzu-Lee Khan falou as palavras consagradas. Para ser ainda mais correcto, o início do tempo para se construir cada uma das histórias teve início no dia em que cada um dos jogadores nasceu. O que hoje tem início é apenas uma ínfima parte das suas histórias e quem não o entenda não terá qualquer hipótese neste jogo das palavras.

Benzerinagui foi criado para quem questiona e se questiona. Benzerinagui não foi criado para dar prazer aos jogadores ou trazer glória a quem o vença. Benzerinagui está acima de todas as vocações e fala mais alto do que as almas dos poetas que aqui se reúnem para jogar. Benzerinagui é um mistério, é um jogo onde se conjugam milhares de emoções, de textos, de registos, de culturas, de conhecimentos e de sentimentos onde as letras reflectem a alma dos seus criadores.

Chover! Eis a palavra, eis o verbo primeiro que um rectângulo amarelo mostarda me acaba de revelar. Com ele e com a água dessa chuva tecerei o início da epopeia. Não será este o rectângulo escolhido para colocar na mesa de jogo. Guardarei esta palavra para mim, para a história, para todos os momentos que com ela construirei.

Chover! Tantas são as coisas que podem cair dos céus. Pode a chuva ser de cinzas, de sal, de lágrimas salgadas, pode ser de homens de chapéus de coco impecavelmente vestidos de negros casacões, pode ser de meteoritos. Pode ser uma chuva de pecados que ferem mais que mil punhais, pode ser uma chuva de palavras delicadas, ou mestiças, estranhas como estranho é o próprio acto de choverem palavras delicadas. Pode ser uma chuva de pétalas de flores, de ideias, ou de negras vontades. Pode ser uma chuva de momentos, de recordações sopradas em todas as direcções por fortes ventos, uma chuva de mentiras num perpétuo combate com as suas inimigas gotas de verdade. Pode ser uma chuva de mel, uma chuva de surpresas, de boas surpresas.

Chover! Eis o verbo guardado dentro deste primeiro envelope que me foi oferecido para jogar.

Nesta aventura choverá como nunca. E o nome do herói ou da heroína tem de ser atribuído após a leitura do primeiro dos seis cartões coloridos. Todos os jogadores escrevem num minúsculo triângulo branco um nome, um único nome que irá baptizar a alma improvável do herói ou heroína da jornada.

Hannibas! Eis o nome escolhido, o nome do herói!

Hannibas é o filho de Lakis e de Argenta, neto de Zaffiris e Ravehrtathis.

Hannibas é o primogénito de seis irmãos guerreiros, seis irmãos tão diferentes como o dia é da noite e como o fundo dos oceanos é do topo do monte dos ventos.

No reino de Hannibas a chuva não pára de cair. É uma chuva eterna, perpétua, contínua, implacável e inclemente.

Chover é o próprio nome com que se baptizou a capital do seu país.

Chover é nome de terra, de sorte, de verbo e de sustento.

Em Chover, no dia em que Argenta deu à luz o primogénito Hannibas, não mais a luz dos sóis brilhou imperial nos céus azuis desse reino.

Hannibas nasceu!

Lakis Kostarinadis levantou nos braços o herdeiro há muito aguardado e os seus olhos sorriram finalmente pela primeira vez.

Hannibas será o futuro rei, sucederá a seu pai tal como este sucedeu a Zaffiris e este a Rakis Kostarinadis, o primeiro dos grandes heróis guerreiros do reino de Chover!

Aqui se deu início ao Benzerinagui, aqui se escolheu o nome do herói da epopeia e se deu uso ao verbo escondido no primeiro dos envelopes perfumados.

A palavra voa, o papel da aventura fica mais azul e a nova palavra escondida prepara-se para comunicar que rumo dar a esta viagem.

Azul-escuro é a cor desta mensagem. Aqui se encontra escrita com letras douradas a palavra Serpente. Com ela surgiu o desejo de a usar, de a colocar virada para baixo e deixar a serpente dourada beijar o aveludado tampo verde do campo de batalha.

Assim se fará e jogarei. Obedeço por instinto ao formigueiro sentido quando li esta palavra.

Hannibas será o futuro rei serpente de Chover. Os seus irmãos tentarão alcançar o brilhantismo das suas façanhas e copiar o heroísmo das suas acções. Tal desiderato irá ser a causa primeira dos seus eternos dissabores.


No grande salão de jogo

Descobrem-se as primeiras palavras

Frágeis luzes coloridas

Conjuntos arquivados com aromas de marfim


Seis são as palavras escondidas

Com as quais crescerá a epopeia

E o herói nascerá

Como todos os jogadores que o fazem acontecer


O jogo começou

No início dos tempos

No princípio de todos os segredos

E a chuva teceu o início da epopeia

Chover é o verbo confirmado

E Hannabis

Filho de Lakis e Argenta

Nasceu


Eis o herdeiro esperado

Que acompanhará agora e para sempre esta aventura

Cujo nome ninguém irá esquecer

No triângulo branco de cartão

Fica guardada a realeza

Hannabis – futuro rei serpente de Chover



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