segunda-feira, 3 de outubro de 2011

MOMENTOS DOIS - 3



03 de Outubro 2011


O jogo recomeçou.

As palavras são guardadas em pequenos cartões rectangulares de diferentes cores. Os cartões são introduzidos em pequenos envelopes brancos, imaculados, que depois de encerrados se lacram com todo o cuidado. Aos trezentos cartões e envelopes se aplicaram, com as mãos abertas por cima da mesa, movimentos rotativos aleatórios que os misturam sem nenhum critério. Um minuto demorou esta missão.

As mãos do croupier, vestidas com luvas brancas reservadas para a ocasião, valsam ao som do papel que se mistura sem sentido no tampo verde da mesa de jogo.

O meu envelope cheira a pinheiro com um subtil toque ácido de citrino polvilhado, aqui e além, por finas nuances de sândalo. Na minha mão direita descansa agora o primeiro de três envelopes que irei receber.

Trinta são as mesas do salão. Dez os jogadores em cada mesa. Cada um receberá três envelopes perfumados onde as palavras se encontram arquivadas.

Um profundo silêncio veste o salão. Dentro em breve o primeiro momento de surpresa acontecerá quando a ordem de abertura for lançada abrindo assim as hostilidades.

Os jogadores são cada vez mais experientes, mais habilidosos e as estratégias que usam para tentar derrotar os adversários tornaram-se mais complexas.

No final da primeira fase cada mesa terá um vencedor. Serão trinta vencedores para duzentos e setenta derrotados. Trinta jogadores serão redistribuídos por três novas mesas dando início à segunda fase do desafio. Destes trinta restarão apenas três.

Quando estiverem encontrados os três últimos vencedores começará a mais glamorosa das batalhas deste jogo.

Palavras nunca antes proferidas, sinais de passados distantes e de futuros inexplorados, serão guardadas em quinze envelopes dourados chamados Benzerinaguis.

O mais idoso de todos os croupiers, mestre dos mestres do salão, entrará finalmente em acção. Tau-Lee Khan relembrará aos finalistas as suas anteriores conquistas e comunicar-lhes-á que nessa fase avançada do jogo elas deixarão de fazer qualquer sentido. Deverão entender o seu percurso como uma simples obra do acaso, uma mera obra do acaso e nada mais. Assim aconteceu a todos os finalistas que se sentaram naquela mesa antes deles.

Mas até que tal aconteça muito jogo irá aquecer este salão, muitas jornadas acontecerão, muito verbo, muita parábola, muita poesia e sensação, muita lágrima e emoção, muita ousadia e aventura, muita paixão, muito ódio e injustiça, muita raiva, muito suor e muita tinta, tudo contribuirá para arrastar os participantes para dimensões nunca antes exploradas.

O meu primeiro rectângulo branco ganhou companhia. Ao perfume campestre de bosque e aventura, juntou-se este aroma a raros óleos da Manchúria combinados com salgados perfumes do mar alto onde se adivinham tímidas nuances de algas secas. Prefiro manter os cheiros afastados mantendo os envelopes separados, um em cada mão, abanando-os ligeiramente.

Fecho os olhos e, por momentos, todos os personagens desaparecem, todos os jogadores desaparecem, todos os croupiers, todos os mestres e ajudantes, todas as mesas e as cadeiras, toda a luz e até o elaborado soalho de carvalho do salão desaparece debaixo de meus pés.

Fecho os olhos e, por momentos, as cartas que mantenho nas mãos explodem com todas as suas fragrâncias que agora se misturam, à minha frente, num bailado invisível. Um leve sorriso ficou desenhado no meu rosto. Adivinho, sem querer, uma das palavras escondidas num envelope que não me pertence. Imediatamente à minha esquerda está sentado um jogador mais idoso de longas barbas ruivas mal tratadas, cabelo comprido e entrelaçado como o dos corsários, escondido num pequeno tricórnio que lhe tapa parte da cabeça e ao qual não se consegue atribuir cor de tão gasto que está. O septuagenário adversário deixou cair um dos envelopes. Eu continuo de olhos fechados, sem me movimentar, saboreando os perfumes das minhas peças de jogo. Estou tão concentrado que, mesmo de olhos cerrados, descobri as palavras que se encontravam guardadas naquele envelope que o meu oponente deixou cair.

Sem nunca abrir os olhos, sem me movimentar, recusei aceitar o óbvio. Recusei observar o meu adversário a recuperar a sua peça do jogo. Recusei olhar para aquele em que me transformarei. As suas palavras são as mesmas que eu receberei com a sua idade. O adversário sentado à minha esquerda sou eu com outra idade.

Percebi esta ironia ainda o jogo mal começou. Jogarei contra o meu futuro e um de nós sairá derrotado. Sei que foi de propósito que deixou cair o envelope apenas com o intuito de me provocar.

Espero pelo último envelope.

Os perfumes de todas as cartas satura o ar do salão e alguns dos jogadores tossem de aflição. Aos mais novos é-lhes difícil aguentar a chegada da terceira das cartas sem que fiquem desorientados. A garganta, os olhos e as narinas são afectados pelas intensas fragrâncias que se espalharam e misturaram pelo grande salão de jogo.

É expressamente proibido sair das mesas. Não se podem levantar sem o jogo ter principiado. Isso está completamente fora de questão.

Vejo rostos perdidos, pálidos, outros esverdeados. Muitos são aqueles que fecham os olhos e os esfregam até à exaustão. Outros espirram e tossem sem parar, outros agitam vigorosamente os envelopes por cima das suas cabeças para fazer dissipar mais rapidamente os seus odores. Estas acções não parecem promover grandes resultados e fazem parte do ritual inicial deste jogo tão antigo.

Por mais vezes que se expliquem as condicionantes e vicissitudes das primeiras três entregas aos jogadores, o resultado é sempre esta estranha performance praticada por cerca de um terço dos participantes.

Com a cabeça a doer, meio adormecidos, meio atormentados, raros são aqueles que destes acabam por sair como vencedores. Não resistem aos efeitos destes odores e já não conseguirão obter a eficácia necessária para jogar com perfeição. Assim acontece desde a criação do Benzerinagui.

Não esperava ter de jogar contra mim. Eu sei que não é próprio imaginar qualquer cenário, fazer qualquer antecipada previsão ao jogarmos este célebre jogo das palavras. As regras são claras, muito simples e muito rígidas.

Não esperes o impossível mas acredita que serás surpreendido pelo impossível.

Ainda nem começámos o jogo e já o impossível resolveu zombar de mim.

O meu futuro continua a procurar o envelope caído. Milhares de perfumes castigam ainda os que não lhes conseguem resistir. Eu aguardo, concentrado, a chegada do terceiro envelope. Depois terá início a efectiva primeira parte do duelo com a abertura oficial do primeiro dos três envelopes.

Volto a abrir os olhos.

Permito-me uma rápida leitura aos restantes adversários desta guilda. Dois ainda tossem e choram sem parar. Outros dois sofrem em silêncio os prolongados efeitos dos perfumes. Outros ainda se mantêm de olhos fechados agitando os braços por cima das cabeças mas em perfeito estado de auto-controle. As duas restantes jogadoras acenderam as suas cigarrilhas e olham para os seus adversários com ar sobranceiro enquanto ajeitam os longos cabelos negros. São as famosas gémeas Öllin, guerreiras das palavras escondidas, temidas pela ímpar criatividade e rapidez de raciocínio, pela rara tenacidade e frieza. Chegam a ser cruéis na forma como subjugam os adversários com o infinito pormenor estético das suas brilhantes narrativas, o poder raro e sensual das suas prosas e a tessitura fina e ritmada com que constroem os seus castelos de poemas. Não esperariam que a ironia do sorteio as colocasse às duas na mesma mesa de combate. Uma delas irá sair derrotada desta primeira fase e, quem sabe, porque não, teremos pela primeira vez a ausência absoluta das manas Öllin da segunda ronda do jogo. Essa será a estratégia a montar com os restantes camaradas de viagem, tirar partido do facto de também eu estar a dobrar nesta mesa. O eu presente e o meu futuro eu, uma novidade que nem as gémeas conseguiram perceber. E se elas combatem com mais palavras do que qualquer dos outros adversários, comigo essa vantagem encontra-se esbatida.

- Que se proceda à entrega do último dos envelopes. Que se dê início ao mui célebre e famoso jogo Benzerinagui. Abri o primeiro dos envelopes e que vença o mais audaz entre os audazes! Aguardamos com expectativa as palavras que todos nos dirão.


Benzerinagui

Benzerinagui

Que se proceda à entrega do último dos envelopes


O jogo recomeçou

Guardaram as palavras

Escondidas em envelopes lacrados

Dourados

Imaculados


Perfumados com subtis aromas

Descansam neles as palavras mensageiras

Palavras nunca antes proferidas


Distribuídas ao acaso

Misturados à minha frente

Num bailado invisível

Os aromas sobem docemente

Saturam o ar do salão


Jogaremos sozinhos

E contra nós

Não esperar o impossível

Mas acreditar que o impossível

nos surpreenderá


A estratégia está montada

Os adversários são conhecidos

Tirarei partido de quem serei

Combaterei em mais do que um tempo

E aguardarei com expectativa

O que as palavras escondidas me dirão

.

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