segunda-feira, 10 de outubro de 2011

MOMENTOS DOIS - 7


10 de Outubro 2011


Ao quinto dia as viagens do Benzerinagui prometem uma série brilhante.

As recordações cruzam-se por todas as histórias, as palavras vão sendo lavradas com rigor, as folhas recebem com prazer os enredos e as personagens. Os perfumes ficam mais suaves. Apenas o calor teima em não serenar.

Do alto da terceira colina da capital do reino de Chover vislumbra-se uma ímpar paisagem de singular beleza. Suas altezas reais, Rakis Kostarinadis e Warwinyhia de Althydis e Kostarinadis, decidiram que seria aqui construída a sua capital. Levantaram-se então as grandes muralhas, todos os palácios, os santuários e as imponentes bibliotecas e também os recintos onde se celebram os grandes jogos da casa Kostarinadis. Ainda hoje se continuam a aumentar as muralhas junto ao porto da cidadela, para lá dos grandes aquedutos que serpenteiam pelas entradas a norte e noroeste da capital.

As muralhas cresceram muito para além da estrada para a zona intermédia de Treghirkh. Foram crescendo até a ramificação que leva aos povos dos vales a sul dos montes serenos. As muralhas são vitais para defender o reino dos ataques dos povos inimigos. Segundo relatos que chegam das tribos de Wawaghan e das que habitam junto aos vulcões do nordeste do país, na província de Wirwihneda, os ataques são cada vez mais frequentes. Muitas são as vítimas inocentes que resultam destas investidas e tem sido cada vez mais difícil travar os invasores. É nítida a vontade que demonstram em avançar para sul do território. Mais tarde ou mais cedo conseguirão montar acampamentos estratégicos ao longo do rio Marthiris e a capital deixará de estar em segurança.

Muitas são as sombras que pairam do Norte e do Oeste.

Os invasores preferem arriscar e fazem-se ao mar perigoso e atribulado do golfo de Treghirkh. Desta maneira conseguem evitar os desertos pantanosos ou a passagem pelos exércitos que controlam toda a zona intermédia.

Durante o reinado de Zaffiris, o segundo grande rei serpente do reino de Chover, alguns bárbaros marinheiros foram capazes de se aventurar e desembarcaram junto à foz do rio Syhanuk. Foi o mais próximo da capital que tribos invasoras alguma vez conseguiram fazer-se chegar. Entre o leito dos rios Syhanuk e Nidishikhan, disputou-se um violento combate que quase feriu de morte o grande monarca. Esta batalha passou a ser conhecida como a batalha das quatro madrugadas. Durante a quarta noite dos conflitos, as tropas fiéis a Zaffiris cercaram os cerca de cinco mil marinheiros Saibhytas e os mais de mil mercenários Galibhythas que com eles tinham forjado aliança. De vestes e corpos tingidos de negro, de caras negras e máscaras da cor da madrugada, em uníssono, as tropas de Chover obedeceram às ordens lançadas pelo generalíssimo Abdini Al Faryhi, grande campeão do reino. Milhares de setas embebidas num venenoso néctar paralisante voaram sibilantes na direcção dos invasores. Por mais seis vezes assim aconteceu até que praticamente nenhum Saibhyta ou Galibhytha se manteve de pé.

Os vencidos foram enviados como mão-de-obra para campos de trabalho em Althydis, em Galymiades, para os grandes lagos do rio Marthiris e ainda para as obras das muralhas na capital do reino de Chover.

As embarcações e o espólio da batalha foram transportados para Sharkut, a cidade-estado na foz do rio Nidishikan, a cerca de três dias de viagem de Chover. Nesta cidade portuária fundem-se ainda hoje os metais para a construção de munições e de escudos de combate, restauram-se e fabricam-se armaduras, constroem-se e equipam-se as máquinas de guerra como as novas torres de combate, reedificam-se as paliçadas e recupera-se todo o armamento que as tropas de Chover necessitam para manter o reino preparado para rechaçar os inimigos.

Zaffiris chegou a Chover após ter sido ferido com gravidade por uma arma de fabrico Saibhyta. O povo temeu pela vida do rei serpente. Por duas semanas a morte fez-lhe companhia junto ao leito real.

Zaffiris viu o passado e o futuro e entendeu que este reino que herdou é dos mais belos de todo o planeta e nenhum outro em beleza e riqueza se lhe pode comparar.

A morte acompanhou-o, leu-lhe os pensamentos e ofereceu-lhe o manto aconchegante. Por três vezes o afagou e por três vezes o recusou.

Na manhã do primeiro dia da terceira semana de convalescença, Zaffiris levantou-se e deu dez passos firmes na direcção da janela do torreão. Aí chegado acenou ao povo que se manteve todo esse tempo, na grande praça central da cidadela, em vigília e oração às divindades.

Por todo o reino se festejou com imensa alegria a recuperação milagrosa de Zaffiris, segundo rei serpente de Chover. Os festejos duraram o mesmo número de dias que o rei necessitou para vencer a própria morte.

Hoje é o primeiro dia de celebração do fim dessas batalhas. Em Chover, de quatro em quatro anos, durante trinta dias, festeja-se a vitória dos exércitos de Zaffiris e do generalíssimo Abdini Al Faryhi na grandiosa batalha das quatro madrugadas e festeja-se também a prodigiosa vitória obtida pelo rei Zaffiris no seu combate contra a morte.

De quatro em quatro anos o orgulhoso povo de Chover dedica-se a esta jubilosa loucura. Deixa-se transportar para essas dimensões únicas da invencibilidade e da imortalidade, mesmo que tal só aconteça de quatro em quatro anos e dure o curto espaço de trinta dias.


No alto da terceira colina

O reino fica a seus pés

Aqui cresceram os palácios

Os templos

Muralhas infinitas

Para além de Sharkut

De Treghirkh

Para além dos montes serenos

De Ormetsh


Pelo golfo de Treghirkh navegaram

Saibhytas e Galibhytas mercenários

Ao rei serpente vieram fazer frente

Numa improvável aliança de corsários


Ordens lançadas de madrugada

Envenenaram seis mil dos invasores

Na escura quarta noite do conflito


Zaffiris viu o ontem

O amanhã

Sentiu da morte o manto aconchegante

Três vezes com ternura o afagou

Três vezes essa louca recusou


Ao povo orgulhoso de Chover

Da janela do torreão acenou

Na manhã desse dia improvável

Zaffiris a morte derrotou

Dedicados a jubilosa loucura

O povo orgulhoso de Chover

Descobriu a palavra

Invencível

Descobriu a palavra

Imortal

.

Sem comentários:

Enviar um comentário