sábado, 4 de fevereiro de 2012

MOMENTOS DOIS - 31



3 de Fevereiro de 2012

Desço.
Não me resta outra solução.
Os ventos gelados sopram fortes. Estou protegido pelo poder da marca azul e mesmo assim conseguem provocar-me desconforto.
É no vale que encontrarei o que aqui vim procurar.
Caminho sozinho, escuto sozinho, entendo sozinho a verdadeira dimensão desta ilha que habito. Todos esperam algo de mim como se fosse eu a história mais aguardada do povo de Chover.
Quem me construiu rei-serpente?
Com que direito alguém me construiu herói desta epopeia?
Passei a fazer parte dos sonhos de outros, das histórias de outros, parte das fantasias de quem, dificilmente, consegue sonhar.
O meu próprio pai não me conseguiu dar a resposta que eu tanto ansiava. Devo dormir durante a noite, devo escutar as histórias que se abrigam nas madrugadas. Devo entender todas as palavras que as noites receberam e as pedras arquivaram. Devo caminhar abrigado pelas sombras, receber a luz tranquila da lua onde habitamos. Devo saber escutar as palavras do silêncio, esse sábio invisível.
Enquanto durmo entendo melhor as misteriosas histórias contidas nos sonhos. Essas pedras etéreas guardam as mesmas palavras que ajudaram a construir a primeira de todas as histórias. Desde que o bisavô de todos os tempos dormiu pela primeira vez nessa longínqua madrugada, o primeiro sonho trouxe-lhe as palavras misteriosas com que começou a construir a primeira história.
Entendo agora as palavras de meu pai.
De noite durmo, de noite dormirei para que se perpetue essa primeira história, para que essas palavras possam por mim ser recebidas como nessa longínqua madrugada. Não me resta outra solução.
Esta é mais uma parte do caminho em que viajo sozinho, em que os pássaros peregrinos deixarão de me acompanhar.
As sombras encarregam-se da minha protecção.
Os ciclones envolvem-me.
A textura de minha pele é tão surpreendente. Ficou assim desde que as serpentes me cobriram e percorreram cada ínfima partícula do meu corpo, fornecendo-me esta improvável aparência.
Sou, tal como me disseram, um jovem alado com pele de serpente.
Sou o futuro rei-serpente de Chover.
Sou esse guerreiro invencível que de noite dorme, de manhã acorda, e espera!
Não me resta outra solução.
Nesta noite em que desço, o sonho conta-me as palavras da primeira história. Desço a dormir e assim, descendo, recebo partes inteiras da primeira de todas as histórias. Os receios continuam iguais aos que sempre aconteceram. As memórias dos verdadeiros momentos, aquelas que moldam para sempre a pessoa em que nos transformamos, continuam iguais ao que sempre foram. Os caminhos são os mesmos, os silêncios iguais, as distâncias entre todos os espaços continuam a aumentar tal como no princípio da viagem. Os viajantes peregrinos continuam a aguardar pelo regresso do herói tal como nos tempos da primeira história. E neste meu sonho, alguém se encarregou de lhes fornecer um herói para os proteger.
E quem protege o herói corajoso que existe em todas as histórias?
Quem protege o meu pai, quem protege Lakis e Zaffiris, quem protege Rakis e a rainha Argenta, senhora minha mãe? Quem protege Larniki, Gorhagahrjani, Leónidas e todo o império de Chover? Quem protege as pedras sagradas da mãe-montanha? Quem protege as histórias que se perpetuam, indefesas pelos sonhos perdidos dos heróis ilhéus. Quem protege os escritores de todas as histórias?
Não me resta outra solução.
Mais uma vez, nesta noite em que durmo e desço do topo da montanha até ao vale, o sonho conta-me parte da história inicial. Nessa primeira pedra o bisavô de todos os tempos entreteve-se como só uma criança rebelde se sabe entreter. Nada foi escrito ao acaso, nada ficou por dizer ou por contar. O tamanho dessa história é tal que ainda hoje todas as histórias recebem o seu contributo. E tudo parece voltar ao que já foi tal como nesses primeiros tempos.
Viajo sozinho, sonho sozinho, penso ao acaso e recebo as palavras como se de um sonho se tratasse.
Esta história não é sobre mim, ou sobre o império que protejo ou sobre quem serei quando regressar à companhia de meus irmãos, de Larniki, dos generais e dos mais de mil soldados que me aguardam. Esta história não é sobre Wawaghan, sobre o dragão sanguinário que destruiu mais de metade de Chover e o transformou para todo o sempre. Esta história, diz-me o sonho, é sobre todas as histórias, sobre as que aconteceram, as que acontecem e as que ainda estão para acontecer.
Desço.
Não me resta outra solução.
No vale das estátuas cor de bronze irei continuar as leituras das pedras.
Fazes-me falta. Sinto a tua falta minha menina-princesa. O teu bailado fez-me acreditar que só no amor se encontram as respostas para todas as dúvidas. Os teus carinhos e a tua luz fazem-me acreditar neste destino. Não deixes que o desconhecido me assuste bondosa Sheridan, não agora que a minha pele adquiriu esta lustrosa protecção. Sei onde habitas. Irei procurar-te pois os nossos corações são um só. Aqui cheguei como peregrino das nuvens, aqui caí e aqui me vieste salvar como nessa primeira vez. Bailaremos nos céus gelados de Wawaghan embalados pelos ciclones que esculpes na palma da tua mão. Bailaremos para sempre nesse lugar escondido onde o tempo não existe, é apenas ilusão.
Desço.
Agora não quero acordar. Não quero afastar de mim o teu corpo de princesa. Não quero deixar de sentir o teu calor, deixar de sentir a tua pele na minha, os teus abraços e os teus beijos, meu amor. Quero que este momento não tenha fim, só um princípio, e que nunca se esqueça de acontecer. Este é um sonho que deve ser gravado, como uma ordem invisível, em todas as pedras de todas as histórias. Sheridan é a minha menina-princesa, aquela que eu amo, aquela com quem desenho estes círculos perfeitos nos céus gelados de Wawaghan, neste lugar escondido onde o tempo não existe, é apenas ilusão.
Desço, pois não me resta outra solução.
Afinal, o poder misterioso da marca azul nem sempre me permite fazer parar o tempo. Este poder absoluto foi-me oferecido mas, de quando em vez, é-me retirado para que nunca esqueça quem sou.
Estou finalmente de regresso ao vale das estátuas gigantes.
A montanha voltou a abrir-se para que as pedras possam receber os peregrinos com sagrada paciência.
Desci!
Não me restava outra solução.
Tenho de entender as palavras das histórias que ainda não li e tenho de decifrar as palavras que se escreveram em todas as noites.
Já é manhã.
Agora é o momento de acordar, e de esperar…

Desço
Caminho sozinho
Escuto sozinho
Alguém me construiu assim
Rei-serpente

Faço parte dos sonhos de outros
Das histórias de outros
Como as pedras que as arquivam

De noite durmo
Recebo as palavras da primeira história
Em forma de sonho
Não me resta outra solução

Os caminhos são os mesmos
Os silêncios iguais
Tal como no início da viagem
Não me resta outra solução

Esta história não é sobre mim
Nem sobre o império que protejo
Nem sobre Wawaghan

O sonho que me trouxe esta história
Diz-me que esta é uma história
Sobre todas as histórias
Sobre as que aconteceram
As que acontecem
E sobre as que estão para acontecer

Fazes-me falta
Minha menina-princesa

Tenho saudades do teu bailado
Dos teus carinhos
Da tua luz
Tenho saudades do teu calor
Saudades da tua pele na minha
Dos teus abraços
Dos teus beijos

Tenho saudades tuas
Meu amor

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