3
de Fevereiro de 2012
Desço.
Não me resta outra solução.
Os ventos gelados sopram fortes. Estou protegido
pelo poder da marca azul e mesmo assim conseguem provocar-me desconforto.
É no vale que encontrarei o que aqui vim procurar.
Caminho sozinho, escuto sozinho, entendo sozinho a
verdadeira dimensão desta ilha que habito. Todos esperam algo de mim como se
fosse eu a história mais aguardada do povo de Chover.
Quem me construiu rei-serpente?
Com que direito alguém me construiu herói desta
epopeia?
Passei a fazer parte dos sonhos de outros, das
histórias de outros, parte das fantasias de quem, dificilmente, consegue
sonhar.
O meu próprio pai não me conseguiu dar a resposta
que eu tanto ansiava. Devo dormir durante a noite, devo escutar as histórias
que se abrigam nas madrugadas. Devo entender todas as palavras que as noites
receberam e as pedras arquivaram. Devo caminhar abrigado pelas sombras, receber
a luz tranquila da lua onde habitamos. Devo saber escutar as palavras do silêncio,
esse sábio invisível.
Enquanto durmo entendo melhor as misteriosas
histórias contidas nos sonhos. Essas pedras etéreas guardam as mesmas palavras
que ajudaram a construir a primeira de todas as histórias. Desde que o bisavô
de todos os tempos dormiu pela primeira vez nessa longínqua madrugada, o
primeiro sonho trouxe-lhe as palavras misteriosas com que começou a construir a
primeira história.
Entendo agora as palavras de meu pai.
De noite durmo, de noite dormirei para que se
perpetue essa primeira história, para que essas palavras possam por mim ser
recebidas como nessa longínqua madrugada. Não me resta outra solução.
Esta é mais uma parte do caminho em que viajo
sozinho, em que os pássaros peregrinos deixarão de me acompanhar.
As sombras encarregam-se da minha protecção.
Os ciclones envolvem-me.
A textura de minha pele é tão surpreendente. Ficou
assim desde que as serpentes me cobriram e percorreram cada ínfima partícula do
meu corpo, fornecendo-me esta improvável aparência.
Sou, tal como me disseram, um jovem alado com pele
de serpente.
Sou o futuro rei-serpente de Chover.
Sou esse guerreiro invencível que de noite dorme, de
manhã acorda, e espera!
Não me resta outra solução.
Nesta noite em que desço, o sonho conta-me as
palavras da primeira história. Desço a dormir e assim, descendo, recebo partes
inteiras da primeira de todas as histórias. Os receios continuam iguais aos que
sempre aconteceram. As memórias dos verdadeiros momentos, aquelas que moldam
para sempre a pessoa em que nos transformamos, continuam iguais ao que sempre
foram. Os caminhos são os mesmos, os silêncios iguais, as distâncias entre
todos os espaços continuam a aumentar tal como no princípio da viagem. Os
viajantes peregrinos continuam a aguardar pelo regresso do herói tal como nos tempos
da primeira história. E neste meu sonho, alguém se encarregou de lhes fornecer
um herói para os proteger.
E quem protege o herói corajoso que existe em todas
as histórias?
Quem protege o meu pai, quem protege Lakis e
Zaffiris, quem protege Rakis e a rainha Argenta, senhora minha mãe? Quem protege
Larniki, Gorhagahrjani, Leónidas e todo o império de Chover? Quem protege as
pedras sagradas da mãe-montanha? Quem protege as histórias que se perpetuam,
indefesas pelos sonhos perdidos dos heróis ilhéus. Quem protege os escritores
de todas as histórias?
Não me resta outra solução.
Mais uma vez, nesta noite em que durmo e desço do
topo da montanha até ao vale, o sonho conta-me parte da história inicial. Nessa
primeira pedra o bisavô de todos os tempos entreteve-se como só uma criança
rebelde se sabe entreter. Nada foi escrito ao acaso, nada ficou por dizer ou
por contar. O tamanho dessa história é tal que ainda hoje todas as histórias
recebem o seu contributo. E tudo parece voltar ao que já foi tal como nesses primeiros
tempos.
Viajo sozinho, sonho sozinho, penso ao acaso e
recebo as palavras como se de um sonho se tratasse.
Esta história não é sobre mim, ou sobre o império
que protejo ou sobre quem serei quando regressar à companhia de meus irmãos, de
Larniki, dos generais e dos mais de mil soldados que me aguardam. Esta história
não é sobre Wawaghan, sobre o dragão sanguinário que destruiu mais de metade de
Chover e o transformou para todo o sempre. Esta história, diz-me o sonho, é
sobre todas as histórias, sobre as que aconteceram, as que acontecem e as que
ainda estão para acontecer.
Desço.
Não me resta outra solução.
No vale das estátuas cor de bronze irei continuar as
leituras das pedras.
Fazes-me falta. Sinto a tua falta minha
menina-princesa. O teu bailado fez-me acreditar que só no amor se encontram as
respostas para todas as dúvidas. Os teus carinhos e a tua luz fazem-me
acreditar neste destino. Não deixes que o desconhecido me assuste bondosa
Sheridan, não agora que a minha pele adquiriu esta lustrosa protecção. Sei onde
habitas. Irei procurar-te pois os nossos corações são um só. Aqui cheguei como
peregrino das nuvens, aqui caí e aqui me vieste salvar como nessa primeira vez.
Bailaremos nos céus gelados de Wawaghan embalados pelos ciclones que esculpes
na palma da tua mão. Bailaremos para sempre nesse lugar escondido onde o tempo
não existe, é apenas ilusão.
Desço.
Agora não quero acordar. Não quero afastar de mim o
teu corpo de princesa. Não quero deixar de sentir o teu calor, deixar de sentir
a tua pele na minha, os teus abraços e os teus beijos, meu amor. Quero que este
momento não tenha fim, só um princípio, e que nunca se esqueça de acontecer.
Este é um sonho que deve ser gravado, como uma ordem invisível, em todas as
pedras de todas as histórias. Sheridan é a minha menina-princesa, aquela que eu
amo, aquela com quem desenho estes círculos perfeitos nos céus gelados de
Wawaghan, neste lugar escondido onde o tempo não existe, é apenas ilusão.
Desço, pois não me resta outra solução.
Afinal, o poder misterioso da marca azul nem sempre
me permite fazer parar o tempo. Este poder absoluto foi-me oferecido mas, de
quando em vez, é-me retirado para que nunca esqueça quem sou.
Estou finalmente de regresso ao vale das estátuas
gigantes.
A montanha voltou a abrir-se para que as pedras
possam receber os peregrinos com sagrada paciência.
Desci!
Não me restava outra solução.
Tenho de entender as palavras das histórias que
ainda não li e tenho de decifrar as palavras que se escreveram em todas as noites.
Já é manhã.
Agora é o momento de acordar, e de esperar…
Desço
Caminho sozinho
Escuto sozinho
Alguém me construiu assim
Rei-serpente
Faço parte dos sonhos de outros
Das histórias de outros
Como as pedras que as arquivam
De noite durmo
Recebo as palavras da primeira história
Em forma de sonho
Não me resta outra solução
Os caminhos são os mesmos
Os silêncios iguais
Tal como no início da viagem
Não me resta outra solução
Esta história não é sobre mim
Nem sobre o império que protejo
Nem sobre Wawaghan
O sonho que me trouxe esta história
Diz-me que esta é uma história
Sobre todas as histórias
Sobre as que aconteceram
As que acontecem
E sobre as que estão para acontecer
Fazes-me falta
Minha menina-princesa
Tenho saudades do teu bailado
Dos teus carinhos
Da tua luz
Tenho saudades do teu calor
Saudades da tua pele na minha
Dos teus abraços
Dos teus beijos
Tenho saudades tuas
Meu amor
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