sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

MOMENTOS DOIS - 33




10 de Fevereiro de 2012

Escrever.
As histórias desta mesa são as mais lidas e as mais visionadas em todas as holoesferas. Os jogadores continuam tão activos agora como no início, logo após a entrega dos envelopes. O rectângulo laranja, último dos seis rectângulos que ainda se encontra no interior do primeiro dos três envelopes abertos, guarda o adjectivo, guarda a palavra que acompanhará o herói nesta fase da jornada. As cores com que se escrevem as letras da palavra são diferentes para cada jogador, mas a cor do cartão, essa é sempre laranja.
Ao meu lado o outro eu mais experiente não dá sinais de cansaço, não olha para mim e continua a escrever sem vacilar. Não olha para mim mas sabe que o meu pensamento é sobre ele, é sobre mim, pois somos o mesmo mas diferentes em idade e em memórias. Estive convencido, até há bem pouco tempo, que esta era apenas uma mentira sem razão de existir. Até há bem pouco tempo não acreditei nesta evidência, apesar da segurança que a situação me transmitia. Até há bem pouco tempo conseguimos manter em segredo esta vantagem, guardada dos outros escritores deste Benzerinagui.
Após a saída de uma das gémeas e do jogador do topo oeste da mesa, sinto que a situação se alterou. Um olhar acusador, felino, carregado de ódio é lançado pela gémea Öllin. Indica que este segredo pode ter sido decifrado pela hábil escritora que já não pode invocar Benzerinagui, não depois de já o ter realizado sem que as poeiras do esquecimento as tivessem para todo o sempre destruído. Esse é um segredo que só nós três partilhamos. Estamos enredados numa teia de interesses que não podemos destruir, caso contrário o grande mestre Tsu-Lee-Khan acabaria imediatamente com as nossas vidas e este Benzerinagui não mais seria nosso.
O meu outro eu olha finalmente para mim, e eu para ele, e o seu rosto deixa transparecer uma ansiedade deveras preocupante. Regressa com o olhar na direcção das palavras que compôs, ergue algumas das milhares de folhas manuscritas, lê para si palavras estranhas usando sons indecifráveis, franzindo a testa enrugada, marcando ainda mais a expressão com linhas ondulantes que lhe ligam as têmporas.
Fico zonzo, sinto uma tontura que me turva a visão por instantes.
Vejo a cor laranja do rectângulo muito desfocada. Não consigo ler a palavra que nele repousa, não consigo porque as letras saltitam no laranja, para cima e para baixo, ondulam, caem e levantam-se, bailam desgovernadas enquanto a minha voz mais velha continua a cantar as estranhas notas da partitura criada pelo outro eu. Todos parecem olhar para mim, fitam-me enquanto o cântico cresce de volume tornando mais denso o ar deste salão.
Perco a noção do tempo, a noção do espaço, a noção dos odores, das luzes e do que escrevi até hoje. Perco a noção de quem sou e do que faço aqui sentado. Deixo de respirar quando este som agudo explode dentro dos meus ouvidos, intenso, cruel, doloroso como a lâmina mais fina do mais afiado punhal.
Este homem que canta não me ajuda, olha para mim enquanto canta com um olhar vazio e distante, meio ausente. Castiga-me com o timbre agudo da sua voz, maltrata-me ao gritar bem alto o tema indecifrável dessa canção. Subitamente pára de cantar, tão de repente como tinha começado.
Preferia que nada disto tivesse acontecido. A sua cantiga acabou substituída pelo pavoroso som das gargalhadas histéricas da gémea escritora.
Um dragão branco, gigantesco, engoliu de uma só vez estes ruídos.
O cantor idoso voltou-se para o outro lado da mesa como se a culpa destes acontecimentos não tivesse sido sua.
O dragão branco, tão branco que parece transparente, deixou-me assim descansar.
Respiro novamente.
Respiro novamente mas com maior dificuldade.
Olho para os outros adversários. É como se não os conhecesse.
Dois conversam.
Dois revêem extensos manuscritos.
Um medita.
Um escreve.
Esse que escreve é o idoso que se aninha ao meu lado.
Uma escritora olha para mim com um olhar acusador, felino, carregado de ódio. Que mal lhe terei feito para olhar assim para mim? Envio um sorriso como sinal de paz, como prova da minha boa vontade.
Que mal lhe terei feito para que continue a olhar assim para mim?
Montanhas de folhas manuscritas quase tapam os rostos das pessoas que se encontram sentadas a esta mesa.
Os seus rostos são sérios e os sorrisos ausentes.
O meu companheiro volta a entoar este estranho cântico, esta estranha ladainha que adensa a atmosfera do salão.
O dragão branco, gigantesco, é agora bem pequeno e quase invisível. Desceu até ao pequeno rectângulo laranja que se encontra no centro do meu amontoado de papéis. Dança nesse tapete ao som da estranha melodia. Dança e o seu corpo parece contorcer-se em forma de letras, parece querer formar dessa maneira uma palavra, parece tão sereno e melancólico como serena e melancólica é agora a melodia que invade o salão.
Silêncio.
A balada não é mais cantada.
O dragão invisível formou com o seu corpo uma palavra no rectângulo laranja.
Essa palavra é um adjectivo.
Essa palavra será usada para que a viagem prossiga, para que eu possa recordar, para que eu possa voltar a escrever.
Voltei a ver com clareza todas as coisas. Recuperei a visão que momentaneamente perdi com esta estranha névoa que me invadiu.
Tenho à minha frente a última palavra, a última palavra do último cartão colorido do primeiro de três envelopes entregues.
Chegou finalmente o momento de a decifrar.

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