terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

MOMENTOS DOIS - 34



13 de Fevereiro de 2012

Por vezes, muitas vezes, duvido se serei eu o autor desta epopeia. Não serás tu o autor deste poema? Depois acalmo e percebo que o que aqui se encontra escrito são palavras da minha autoria embora, confesso, muito do que aqui não se encontra foram pensamentos meus que se escaparam. Inventei estas personagens, todas, sem excepção, mesmo Hannibas. E são tantas as vezes em que escuto as suas palavras, perguntando-me:
- Qual de nós inventa o outro? És tu quem me inventa ou sou eu, Hannibas, quem te faz acontecer? Talvez isso não importe. Mais importante é eu ter vindo até aqui para te encontrar. Se tu és, como dizes, aquele que escreve e quem faz acontecer esta viagem, se tu és quem dizes ser e se tens esse poder, então necessito da tua ajuda.
Perante estas palavras do futuro rei-serpente, respondi-lhe de imediato:
- Tu sabes que as coisas não acontecem exactamente dessa forma. Nenhum caminho se encontra desenhado, nenhum destino se encontra já esculpido ou deliberado.
E o jovem príncipe voltou a fazer escutar a sua voz:
- Os dias da minha juventude passaram velozes e alegres. Sinto-me preparado para provar os néctares mais doces desta nova etapa, sem pressas, pois sei que os cabelos ficarão brancos mais cedo do que imagino. Aprendi a dormir, aprendi a acordar e aprendi a saber esperar. Tu sabes o que está para acontecer pois, como afirmas, és o autor deste poema. Necessito da tua ajuda para me contares as partes mais importantes da minha história.
A mesma melodia, estranha melodia, cantada pelo meu outro eu, volta a escutar-se no salão.
- Posso dizer-te que visitarás brevemente a corte das meninas princesas, esse lugar secreto onde se dedicam à sábia tarefa de esculpir ciclones. As importantes esculturas que lhes saem das mãos são vitais para a continuação da tua história, desta história e de todas as histórias. Estão escondidas, disfarçadas, e o rei seu pai gosta que assim se perpetuem para que nada altere o rigoroso equilíbrio de tudo aquilo que constroem. Também ele foi um escritor, sentava-se às mesas de jogo, camuflado, e assim jogava cada letra e cada palavra com profunda sabedoria. Manipulava silenciosamente os seus enredos tendo como único objectivo a vitória final. Aprendeu a ser escritor observando e lendo todas as histórias dos anteriores Benzerinaguis. Aperfeiçoou a sua arte como se fosse uma ciência exacta e dava-lhe expressão como ninguém. Se hoje participasse nos torneios ninguém seria capaz de o derrotar.
Hannibas parou, tentou entender o que lhe contei. Após reflectir por breves instantes continuou a fazer-se escutar na minha cabeça.
- Se for assim, como dizes, nada faz grande sentido. Se assim for, não estarás a mentir quando afirmas ser tu o autor de tudo aquilo que aqui foi escrito? E qual é o nome desse sábio rei-escritor? – perguntou Hannibas.
- Chamavam-lhe Baharhvatin, o grande cozinheiro das palavras, maravilhoso mestre dos enredos. Era quase tão perfeito nas histórias que inventava como o bisavô de todos os tempos.
O valoroso príncipe pareceu satisfeito com estas informações e sentou-se por momentos para descansar.
- Tenho fome e sinto-me cansado, um cansaço diferente dos outros que antes me invadiram. Vou aproveitar esta pequena árvore para meditar.
O futuro rei-serpente descansa da sua longa e extenuante caminhada e pede-me para que lhe conte mais histórias desse famoso rei-escritor antes de adormecer. Acedi prontamente ao seu pedido.
- Baharhvatin, esse mago das palavras, enquanto escrevia, encantava os seus adversários com uma melodia, a mesma deliciosa melodia que usava para ensinar e fazer adormecer as suas meninas-princesas. Essa música que cantava envolvia os participantes dos Benzerinaguis de tal forma que todos, sem excepção, começavam a dançar pelos espaços do salão, sozinhos, aos pares e até em grupos mais alargados. Baharhvatin cantava enquanto escrevia as mágicas palavras. Os seus adversários dançavam e distraíam-se, passavam décadas inteiras a bailar as suas melodias encantadas e assim o rei-escritor criava mais enredos e mais personagens do que todos os outros. Tsu-Lee-Khan, mestre oficial de todos os Benzerinaguis, apareceu no salão vestido com os trajes cerimoniosos e observou o bailado que ali acontecia. Era impossível o mestre governar o grande jogo das palavras se Baharhhvatin continuasse a utilizar as hipnóticas melodias para benefício próprio. O rei-escritor sabia qual o castigo para quem utilizasse meios impróprios para tentar alcançar a vitória no torneio. Mas as histórias de Baharhvatin continham misteriosos poderes capazes de perturbar o juízo e a razão ao próprio mestre Tsu-Lee-Khan. Ele ficava furioso quando isso acontecia mas não podia dar a conhecer ao rei-escritor esse seu lado mais cinzento. Precisava do regresso do silêncio para sua tranquilidade. Sem ele não podia continuar a arbitrar a prova com a seriedade necessária. Foi por isso que, numa rara ocasião, Tsu-Lee-Khan apelou ao bom-senso de Baharhvatin pedindo-lhe que parasse de cantar a maravilhosa canção. O rei-escritor disse que só o faria quando considerasse oportuno. Pediu mais tempo a Tsu-Lee-Khan para o seu momento musical e ofereceu-lhe muito ouro, folhas de chá e raros temperos para o precioso ritual do Kalatziki, isto para além de outras raras especiarias perfumadas que só se cultivam nas grutas mais profundas do seu reino. Após lhe ter oferecido esse vasto tesouro, Baharhvatin perguntou qual o motivo porque o grande mestre nunca participara em nenhum Benzerinagui. Seria por recear a derrota ou, pior ainda, seria por ter receio da vitória final? Tsu-Lee-Khan respondeu-lhe que não podia participar como jogador. Se isso acontecesse venceria todas as batalhas pois seria juíz em causa própria e o jogo estaria ferido de grande irregularidade. Ele nunca poderia ocupar o lugar de jogador assim como o seu lugar de mestre não poderia ser ocupado por um outro que não ele. Estas respostas aborreceram o rei-escritor. Sentia-se algo cansado pois ele sabia de todos os odores, de todos os sabores, de todas as cores e quais os sentidos de todas as histórias. Preferia ser ele a abandonar, por vontade própria, o jogo das palavras. Baharhvatin usava os seus poderes para antecipar as vitórias, usava-os porque essa era a sua vontade e afirmava que Tsu-Lee-Khan era um seu servo, mais uma de tantas personagens que criara para lhe fazer companhia nessa solitária existência. Mas aquilo que verdadeiramente o fez cantar nesse ímpar Benzerinagui foi o facto de ter encontrado, pela primeira vez numa mesa de jogo, um adversário que o conseguiu seduzir pela grandiosidade das suas palavras. Esse foi o motivo real que fez com que Baharhvatin cantasse daquela maneira. O rei-escritor pediu a Tsu-Lee-Khan que lhe trouxesse de volta à mesa o notável adversário. Prometeu-lhe que mal o agarrasse pelo braço, a sua voz deixaria de se escutar e o jogo poderia recomeçar. O mestre acedeu ao pedido do rei-escritor e Baharhvatin entregou-lhe um saco carregado de esmeraldas como prova de apreço. Disse-lhe ainda que as outras riquezas já prometidas seriam depositadas à porta da sua morada mal nascesse um novo dia. Tsu-Lee-Khan avançou pelo salão até ao grupo de bailarinos onde bailava o jogador que tanto seduzira o rei-escritor. Com perícia felina, o mestre agarrou-o pelo braço e imediatamente a melodia deixou de se escutar. Os jogadores pararam de dançar e olharam-se espantados. Não percebiam o que lhes tinha acontecido mas regressaram com rapidez aos seus lugares nas mesas de jogo. O grande mestre Tsu-Lee-Khan bateu palmas e deu ordens para que se reiniciasse esse importantíssimo Benzerinagui.
Por esta altura Hannibas já se encontrava adormecido junto à pequena árvore que encontrou no seu caminho. Por esta altura cresce ainda mais em mim a imagem corajosa do espantoso futuro rei-serpente. Juntos aguardamos o destino das palavras que lhe dedicarei.
Por vezes, muitas vezes, duvido se serei eu o verdadeiro autor desta epopeia. Depois acalmo e percebo que estes momentos surgem ciclicamente na cabeça de todos os jogadores e eu, naturalmente, não sou nenhuma excepção.
O mestre bateu as palmas, eu coloco as mãos nos olhos e, ao retirá-las, olho para o rectângulo laranja onde o adjectivo já se encontra nitidamente desenhado.
Pintado com as cores brilhantes da lua está desenhada, no laranja, a palavra eterno. Esse é o adjectivo decifrado que o meu herói terá de fazer cumprir.

Serei eu o autor desta epopeia
Não será tu o autor deste poema?

Inventei personagens
Todas
Sem excepção

Escuto-lhe as palavras
Mesmo as de Hannibas
Que tantas dúvidas me traz

Ajudá-lo-ei
No caminho
Para além da alegre juventude
Essa nova etapa

Contar-lhe-ei o que está para acontecer
Partes importantes da história
As necessárias
Para o acalmar

Do que lhe digo, duvida
Quer saber mais sobre o rei-escritor
Enquanto descansa e medita
Antes de adormecer

Inventei Baharhvatin
Que me inventou a mim
Acalmei
Percebi que não sou excepção
Serei o autor desta epopeia
Não serás tu o autor deste poema?

Hannibas adormeceu
No seu caminho
Nessa nova etapa

No laranja
Pintado com as brilhantes cores da lua
Surgiu a palavra eterno
Adjectivo destinado
Que o herói terá de fazer cumprir.

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