sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

MOMENTOS DOIS - 30




26 de Janeiro de 2012

Lembra-te das palavras e dos pássaros e das armas que chegaram dos céus durante a madrugada. Deves descansar depois no final da viagem.
As serpentes passeiam pelo teu corpo, fornecem-te o sangue e a força ímpar que habita em todos os soberanos de Chover. Não grites, não te movas, mantém-te tranquilo enquanto contas os segredos às serpentes. Recorda as tuas vidas passadas, todos os seus finais são relembrados para que depois os voltes a esquecer.
Das neblinas surgirá um imenso lago de água fresca que te seduzirá como um tesouro assim como todas as perguntas que terás de responder. Deves manter-te imóvel ao longo desse inquérito e deves responder antes de matares a tua sede. Não cedas à tentação de beber água do lago antes de dares resposta às questões colocadas pois grande infortúnio resultará para o teu reino se tal acontecer.
As serpentes percorrem cada parte do teu corpo, tapam-te até que só a cabeça fica descoberta. Os corpos de Gorhagahrjani e Leónidas são-te oferecidos de presente pela coragem que tens demonstrado.
Resiste à sede e responde às questões antes de matares essa inimiga, pois grande infortúnio resultará para o teu reino se tal não acontecer. As serpentes que te cobrem colocam-te ao lado dos teus irmãos. Desse modo permanecerão até que Lakis vos visite. Ficará espantado por vos encontrar assim deitados, lado a lado, estando tu, Hannibas, já coberto de serpentes.
Responderás, nesse momento, às questões que a voz do lago te colocará, essa voz que todos escutam mas que parece não ter dono, essa voz que diz ter assassinado os teus irmãos apenas porque eles, ao contrário de ti, beberam a água do lago antes de lhe transmitirem as respostas.
- Pai, preciso da tua ajuda, vem comigo colocar-te como um peregrino sobre estas pedras que aqui se encontram na margem do lago. Pai, fornece-me a força e a sabedoria necessárias para responder correctamente a todas as questões.
E tal como a voz misteriosa de Hannibas lhe indicara, uma outra voz, bem mais audível e autoritária, faz as primeiras perguntas.
- O que pode ser mais veloz do que o vento e os ciclones? O que pode cobrir a terra inteira?
E Hannibas responde com coragem às primeiras questões:
- O pensamento é mais veloz do que o vento e os ciclones, e a escuridão é bem capaz de cobrir a terra inteira.
E a voz continua a consultar:
- Dá-me um exemplo de espaço, se fores capaz.
Hannibas responde de novo:
- As minhas mãos unidas como uma só.
E a voz pergunta:
- Dá-me um exemplo de sofrimento, se fores capaz.
Hannibas volta a responder:
- A ignorância é um exemplo de sofrimento.
E a voz insiste:
- Dá-me um exemplo de veneno, se fores capaz.
Hannibas responde:
- O desejo é um exemplo de veneno.
E a voz volta a insistir:
- Dá-me agora um exemplo de derrota, se fores capaz.
De novo, Hannibas lhe responde:
- A vitória! A vitória é um exemplo de derrota.
E mais uma pergunta surge no ar:
- E o que surgiu primeiro antes de todas as coisas? Terá sido o dia ou a noite?
Ao que o jovem príncipe responde:
- O dia, o dia surgiu antes da noite mas apenas por um breve e fugaz dia.
E outra pergunta surge e avança:
- Qual é a maior de todas as causas do Mundo?
Hannibas responde:
- O Amor! O Amor é a maior de todas as causas
E mais uma questão lhe é colocada:
- Qual é o teu oposto?
Com muita calma, Hannibas responde:
- Eu próprio sou o meu oposto.
E outra pergunta vem logo a seguir:
- O que é a loucura?
O futuro rei serpente responde:
- A loucura existe nos nossos caminhos esquecidos.
E mais uma questão se levanta:
- E as revoltas? Porque se revoltam os homens, afinal?
Sem pressas, Hannibas dá a resposta:
- Para encontrar o belo, o raro e a beleza, quer no tempo de vida quer no da morte.
Outra pergunta é feita com rapidez:
- E o que é inevitável para cada um de nós?
Hannibas reflecte e responde:
- A felicidade!
E a última pergunta é anunciada:
- E qual é a maior das maravilhas?
Sem hesitar, o jovem responde:
- Cada vez que a morte nos toca e nós vivemos, sobrevivemos, como se fossemos imortais! Essa é a maior das maravilhas.
Então a voz do lago deu ordens para que Gorhagahrjani e Leónidas ressuscitassem. Quando Hannibas olhou para a pedra onde julgava que Lakis se tinha colocado, reparou que esta estava vazia, reparou que esta esteve vazia durante todo o tempo que durou a prova. E Hannibas ficou perplexo, pensou e não quis acreditar no que acabara de descobrir. Nesse exacto momento lançou uma questão à voz que provinha do lago.
- Quem és tu, afinal, a quem tantas perguntas respondi?
E a voz do lago responde num tom mais harmonioso.
- Acabaste de descobrir a resposta a essa questão, meu bondoso Hannibas. Eu sou Lakis, teu pai! Passei a ser a constância, a justiça e a ordem de todas as coisas.
A surpresa faz com que Hannibas não pare de falar.
- E assumiste aqui, tão longe de tudo e de todos, a forma de um lago?
Lakis responde com um sorriso na voz:
- Eu agora sou todas as formas, meu filho, e estou bastante satisfeito. Fico contente por poder ver-te crescer. Chegou o momento de te conceder a realização de um desejo. Escolhe bem, sê sensato, não te esqueças que o teu corpo se encontra coberto de serpentes e que a montanha se voltou a fechar.
Hannibas insiste:
- Quer isso dizer que a minha viagem está perto do fim? Um dia apenas, um só, é o que me falta para o fim desta jornada. Mais um dia em que voarei oculto, esquecido, irreconhecível no meio de tantas outras aves peregrinas. Será que me devo camuflar com outras vestes que não estas?
Lakis fornece outra resposta:
- Deves escolher um disfarce das cores do teu mais profundo desejo, um que te permita esconderes-te dos teus poderosos inimigos, um disfarce tão perfeito que nem eu próprio te conseguirei distinguir. Agora já podes beber e matar a tua sede.
Este é o momento em que os três irmãos mais velhos da Hglira da casa Kostarinadis bebem a água refrescante, pura e cristalina do grande lago da mãe-montanha.
Porque se reinventa este poema? Porque procuram os jogadores deste Benzerinagui alcançar tamanha glória com tão grande afinco, arte e dedicação? Para que em todas as holoesferas o coração dos homens continue a receber partes importantes da primeira história, mesmo que essa tarefa pareça impossível.
Este é já um dos mais disputados Benzerinaguis e um dos mais perigosos também. Por todas as galáxias do universo as histórias e epopeias são escutadas e em todos aqueles que as escutam crescem dúvidas e nascem razões para procurarem os seus próprios caminhos. Esses serão os espectadores-leitores que mais contribuirão para o desenvolvimento destes poemas.
- Para onde vou agora? Ainda não sei. Tenho o coberto de serpentes e não sei como aqui cheguei. Quem é o autor da minha história? Chego a duvidar da minha própria existência. Chego a duvidar da existência de meu pai ou até se aqui me encontro, se sou real ou ficção. Duvido da minha existência e hesito, como se fosse apenas um actor nesta história em que viajo. Sim, sou eu que escrevo, mas muito daquilo que verdadeiramente acontece não acaba aqui escrito. Muitos dos meus pensamentos acabam perdidos, soltos como o vento, como os ciclones, como as gotas de água fresca das cascatas de Wawaghan. Sou eu que me invento e sou eu que invento esta viagem. Sou eu quem pinta estas paisagens, as personagens, os tempos e o estranho enredo do poema. Prefiro parar de pensar! Era bem melhor se assim acontecesse pois, em boa verdade, nada do que aqui se passa é inventado por mim. Esta epopeia tem vários criadores. Larniki inventou-me e foi por mim inventado. Wawaghan inventou-me e foi por mim inventada, tal como todas as lagoas onde me vim conhecer. O Marthiris inventou-me e foi por mim inventado, tal como a água que há bem pouco fui beber. Esta epopeia inventou-me e foi por mim inventada, como estas palavras que me fazem aprender.
- Hannibas! Estava à tua procura. Tenho frio! Preciso que salves o grande império de Chover! Preciso que assumas, corajosamente e de uma vez por todas a tua condição de rei-serpente. O que me dizes Hannibas? Que tens tu, afinal, para nos contar? Que histórias tens tu para nos revelar?
O jovem princípe procura as respostas para as questões colocadas pela sua própria imagem reflectida nas águas da lagoa.
- Eu não sei! Ainda desconheço parte importante da minha história. Faltam-me tantas pedras para descobrir. Sou vida e estou vivo. Estes são os dias finais da minha juventude. Esperam-me os sabores sublimes das mais doces iguarias mas também me esperam as cores baças da minha pele gasta e os lagos de águas sujas e barrentas. Escutarei lamentos, choros e gritos desesperados dos que pedem o meu auxílio.
- Também eu os escuto meu filho!
E Hannibas pergunta:
- O que faria se fosse eu, meu pai?
E Lakis responde:
- De noite durmo e de manhã acordo, e espero…

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