domingo, 27 de novembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 16


22 de Novembro 2011


Descobrir um sonho no centro do reino. Que comparação podemos fazer entre estes planaltos de agora e os que anteriormente aqui existiam?

Os viajantes distanciaram-se dos vestígios de destruição, deixaram os rastos de morte dos campos de Treghirkh e o odor que emanava das lamas e dos destroços espalhados pelos seus terrenos estéreis. Estes territórios que permitem a ligação desde os montes Serenos até ao centro do imenso império, não parecem ter sido tão afectados pela fúria do dragão. Aqui o Marthiris domina a paisagem, o gigante serpenteia dando vida, fornecendo caminhos e soluções, enriquecendo as populações que sem ele dificilmente sobreviveriam. As distâncias, assim como o clima húmido e abafado, criam enormes dificuldades aos diferentes povos da grande região central.

O império desenvolveu-se por influência destes corajosos guerreiros, com eles cresceu e deles ganhou a sua força, o seu dinamismo e a sua coragem. Muitas foram as cidades-estado que cresceram junto às margens do Marthiris. São elas que constituem a esperança do reino. Ao norte do lago do Medo, antes de se alcançar a margem sul do lago Nhaguk, encontra-se a cidade estado de Nadhiris. É aqui que a comitiva irá descansar por alguns dias.

Os habitantes recebem o futuro rei serpente e toda a corte com imensa alegria. Hannibas, que permanecera em silêncio os últimos dias da viagem, não consegue evitar um rasgado sorriso. O império que herdou continua vivo, esperançoso e destemido.

O rasto das viagens, carregado de paisagens sombrias, foi muito duro para as lembranças dos cavaleiros. Aqui em Nadhiris os sonhos parecem ser de audácia e revelam vontade de mudança. Aqui tudo se encontra como deve ser. A população desde muito cedo marchou para a capital do reino para ajudar na sua reconstrução. Foram daqui enviados muitos trabalhadores, mão-de-obra especializada, arquitectos e sábios empreiteiros. A loucura desse dia em que o monstro atacou reflecte-se no dia-a-dia da população de Nadhiris. Aqui também chegaram muitas das vítimas da tragédia, feridos, desabrigados e muitos desalojados encontraram um refúgio. São muitas as histórias de infortúnios que se escutam pelas ruas e avenidas desta cidade bastião. Nadhiris transformou-se num dos principais portos de abrigo para os que sentiram de perto o bafo negro do dragão.

Hannibas sente crescer uma força invisível dentro de si. A população recebe o futuro rei serpente num estado de quase encantamento e ele entende, neste momento, a real dimensão das tarefas que o esperam. Nos olhos de todos percebe-se uma esperança quase divina, lê-se a dimensão dos desgostos, das agruras e das mágoas passadas, tudo misturado com uma lealdade e um sentimento de orgulho só possível a quem sabe fazer parte deste império. Lançam-se palavras aos céus, tão alto que se escutam até nos montes Serenos. São palavras de incentivo, um grande estímulo para o jovem Hannibas. Após os últimos dias de viagem, estas imagens colaram-se às memórias de todo o séquito e aplacaram muitas das recentes recordações.

Em Nadhiris se repousa.

Em Nadhiris se procede ao reabastecimento.

Em Nadhiris se retemperam as forças.

Os animais são alimentados e um novo ânimo cresce nestes dias.

Em Nadhiris, Hannibas resolve terminar com os silêncios. Ao fim do terceiro dia de descanso, véspera da partida para a etapa final da viagem, o príncipe retoma com Larniki a conversa interrompida.

- Boa-noite tio. Amanhã, quando partirmos, nada será como dantes. Estes dias fizeram-me pensar. Entendi realidades que nunca tinha imaginado. O nosso povo é grandioso e acredita que eu lhes posso facultar aquilo que desejam e muito do que agora necessitam. É preciso voltar a reerguer as cidades e vilas destruídas, revigorar os campos estéreis, repensar as comunicações entre muitas das províncias que foram modificadas pela nova geografia dos terrenos. É necessário reconstruir as muralhas das fronteiras destruídas e fazer com que a esperança volte a aquecer os corações de todos os povos do império de Chover. As pessoas falaram-me com os olhos, com o coração e com os gestos dos corpos. Os mais jovens falaram-me com sorrisos e acenos e os idosos com as mãos, as vénias e as expressões dos seus rostos.

Larniki manteve-se de costas para Hannibas, sentado junto a uma mesa improvisada no centro da grande sala de recepções. Ouviu as palavras do sobrinho, sem nunca se voltar, e deixou-o desabafar.


25 de Novembro 2011


Nasceu o dia, nasceu uma nova esperança na cabeça do futuro rei serpente.

Por muito tempo que passe, por muitos sonhos que se concretizem no futuro reinado de Hannibas, tudo tem de ter o seu início, um princípio, um momento em que a luz se sobrepõe às escuras nuvens do desalento.

A história do futuro rei começa aqui, marcada com as suas curtas palavras, antes de avançar rumo às montanhas sagradas de Wawaghan, onde lhe será fornecido um treino intenso e obterá todas as lições necessárias ao seu futuro.

O seu destino fica aqui traçado. E o povo reagiu como Larniki imaginou.

Milhares vieram dar-lhe esta sentida mensagem de esperança. Hannibas entendeu que a sua simples presença foi suficiente para fazer mudar os rostos daqueles que o vieram saudar. A sua presença é suficiente para fazer aquecer os corações dos que nele acreditam. Muitos dos que ali se deslocaram quase não tinham energia mas substituíram-na por um fervor e uma devoção quase infinitas. Os rostos transformaram-se e a alma do futuro rei ganhou uma nova chama.

Recordou os dias em que o seu pai regressava vitorioso das batalhas, e em particular, daquela em que ficaram definitivamente delimitadas as fronteiras da província de Wirwihneda, aumentando o domínio e a influência a Nordeste do vasto império de Chover. Estes povos sempre foram os mais desprotegidos de todos os povos do reino pois eram os que se encontravam mais afastados da capital do império. Lakis vivia preocupado no estudo das estratégias defensivas para estes povos do Norte e o seu grande interesse acabou por resultar na épica batalha contra o clã dos Majhurks, grandes aliados de todos os inimigos de Chover.

Em menos de meio ano, Lakis planeou e executou a maior marcha de generais e de tropas alguma vez vista em toda a história do império. Era clara a vontade do rei serpente. Atacar os inimigos antes que estes crescessem em poderio bélico e na capacidade estratégica. Antecipou-lhes os intentos. Manteve em segredo o avanço das tropas rumo ao Norte por formas tão misteriosas que ainda hoje assim permanecem. Reforçou as guardas de todas as cidades-estado ao longo do processo e desenvolveu técnicas de combate muito inovadoras com o apoio dos seus abnegados generais. Minou muitos dos impérios inimigos com notícias e histórias falsas acerca de questões sensíveis da vida da corte. Desenhou fragilidades e fraquezas onde a força e a coragem cresciam, alimentou muitas mentiras sobre as relações de poder entre os seus conselheiros e descreveu doenças e mil maleitas que a ele e à família iam consumindo. Cedo os inimigos acreditaram numa inédita conjugação de factores que em muito penalizavam o grande império. Se assim continuasse a acontecer, era fácil invadir avançando pelas fronteiras mais remotas de Chover, e as de Wirwihneda foram sempre as mais apetecíveis.

Mas as armadilhas desde há muito que ali se encontravam montadas e um após outro, todos os impérios invasores foram derrotados. Ficaram apenas as tropas vermelhas dos líderes Majhurks. Cercados pelos lagos a oeste, pelo Akorkh mais a leste e pelas tropas de Chover a norte e a sul, muitos Majhurks acabaram por se render apesar de alguns milhares se terem lançado das altas falésias para o mar. Estas foram as últimas batalhas travadas pelo seu pai e demonstram bem a ímpar visão do grande Lakis, último rei serpente de Chover.

Novas e poderosas alianças foram redesenhadas por toda a província de Wirwihneda. O império cresceu e acrescentou grandes regiões aos seus domínios, estendeu-se mais para nordeste até onde os rios Wirwih e Neda se fundem. Vai até onde estes desaguam no grande mar de Akorkh no golfo do mesmo nome, na grande cidade de Sirbhit.

Hannibas recorda-se dessa chegada do pai à capital depois de meses de combate. Estes últimos dias em Nadhiris trouxeram-lhe de volta a memória desses momentos.


Não desejavam regressar

A vontade é a de viver

De reconstruir e de reinar

O povo demonstrou o seu poder


O monstro decidiu destruir

Galgou montes e cordilheiras

Incendiou províncias inteiras


O povo ergueu-se e regressou

Levanta a cabeça e sobrevive

Hannibas tem nas mãos o seu destino

Carrega o mundo às costas

Sem ter para isso a idade

E os sonhos transformados em memórias

De tempos já idos

Com saudade


Sob as ordens do rei serpente

Alargaram territórios

Os homens levantaram as armas

Corajosos guerreiros

Com fervor serviram o Império

Marcharam com Lakis

Rumo ao Norte de Chover


Não desejavam regressar

Só guerrear, pelejar

Só viver

Mostrar ao inimigo

A sua força, o seu poder


.

Sem comentários:

Enviar um comentário