sábado, 12 de novembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 14


11 de Novembro 2011


A chuva inclemente, eterna, cai como desde o nascimento do império. Regatos descem serpenteantes por entre os penhascos, transbordam dos leitos e dos sulcos que escavaram no terreno. Poças, que nos dias menos chuvosos pouco crescem, ganham hoje a dimensão de lagos com dimensões generosas. Tornou-se difícil avançar nestas condições. Os cavalos, cansados, deram hoje mais renúncias ao avanço do que em todos os dias já gastos desde a saída de Chover.

Larniki olha para as nuvens cor de chumbo do céu de Trighirkh. A comitiva atingiu a parte mais ocidental da viagem, o lugar onde o novo lago do Medo penetrou na província a sul dos desertos pantanosos. Aqui desenhou o dragão a cabeça e pelo focinho fez sair os bafos venenosos e escaldantes das entranhas. Nada parecia ser capaz de resistir ao poder destruidor dessa besta. As chuvas eternas transformaram as cinzas neste imenso pantanal de negros e de ocres que se colam às pernas e às patas dos animais.

Os olhos e o sorriso malévolo das escritoras surgem a Larniki nesse céu cinzento num brevíssimo intervalo de tempo. O conselheiro real respondeu-lhes com um sorriso de herói e as nuvens ficaram livres nesse momento.

- Benzerinagui! Benzerinagui! – gritou a gémea Öllin quase caindo da poltrona. – Algo nesta mesa não se está a passar de acordo com as sagradas regras do jogo.

Subitamente, sem que nada o fizesse prever, a escritora invocou Benzerinagui por suspeitar de inconformidades às normas da partida. Meste Tzu-Lee-Khan terá de mediar a acusação tornando-se a sua presença imprescindível para a resolução do assunto.

Ninguém suspeita que alguma das epopeias se vá construindo com uma menos nobre arquitectura dos enredos, com incorrectas utilizações das palavras consagradas, com tentativas impróprias por parte de algum dos jogadores de se apropriarem das palavras consagradas dos adversários, das suas linhas de estratégia ou até, mais grave ainda, de darem um uso impróprio às personagens. Os resultados que vinham sendo reportados das diferentes galáxias dos universos conhecidos dão conta de grande satisfação pelas epopeias que se constroem nesta mesa. Se nas restantes vinte e nove mesas de jogo já não se encontram os dez jogadores iniciais e até numa dessas mesas desapareceram sete dos seus elementos, aqui todos se mantém em disputa numa improvável concentração de qualidade que não caiu bem às orgulhosas gémeas escritoras.

- Benzerinagui! Benzerinagui! – o jogo será verificado.

Mestre Tzu-Lee-Khan apenas por uma vez teve de intervir numa idêntica circunstância. Como desfecho da situação, os jogadores foram banidos para todo o sempre pelas poeiras do esquecimento. As palavras e as pedras foram trituradas e de todas as holoesferas se apagaram as memórias e imagens dessas histórias. Ficou apenas registada a ocorrência pela extrema gravidade do sucedido. Não se sabe o seu nome, nem o que aconteceu, nem quem denunciou, nem sequer os motivos da denúncia ou os contornos do acontecimento. A situação estava caída em total esquecimento, apagada de todas as recordações e praticamente de todas as lembranças, e agora esta estranha participação trás de volta a memória desse dia em que o jogo esteve interrompido por nefastas circunstâncias.

O traje cerimonial do Mestre obriga a que todos os participantes se ergam em respeitosa homenagem. As gémeas estão visivelmente perturbadas. Mesmo na presença do Tzu-Lee-Khan não fazem por evitar a conversa nervosa que as une.

- Desrespeitais-me ao não promoverdes o silêncio? Desrespeitais-me ao não apagardes as cigarrilhas e desrespeitais o meu descanso ao invocardes Benzerinagui para participardes uma hipotética inconformidade no jogo? Desrespeitais-me com tamanha sobranceria! O peso do castigo a aplicar será na igual proporção das insolências. Apenas por uma vez foi este jogo interrompido em centenas de milhares de torneios já realizados e dessa única insensata situação resultou a mais drástica das medidas previstas na lei do jogo.

As gémeas pararam com a conversa, apagaram as cigarrilhas e curvaram-se com reverência perante as palavras do Mestre. De cabeça baixa e de mãos juntas e erguidas por cima das cabeças aguardam por mais palavras de Tzu-Lee-Khan.

- A minha vontade é apenas uma! Destruir as vossas histórias, destruir a vossa existência e entregar-vos aos ventos do esquecimento. Contudo, respeitarei os códigos antes de dar cumprimento aos meus desejos e obedecer às minhas vontades.

Este apego à obediência dos códigos do jogo nunca tinha sido um motivo para o Mestre deixar de praticar as suas vontades supremas. Pela primeira vez Tzu-Lee-Khan não conseguiu fazer vingar as palavras primeiras que nasceram na sua razão e não despedaçou em poeiras e cinzas as escritoras. O sorriso velhaco das gémeas apareceu-lhe numa imagem sombria, provocadora, poderosa e maléfica, tal como foi visível nos céus cinzentos de Chover. Sentiu um arrepio como nunca antes tinha experimentado e voltou atrás com essa primeira intenção. O Mestre coreografou gestos rápidos com a mão direita junto aos olhos e à orelha, abanou os dedos com rapidez e fez desaparecer essas imagens e ideias e o seu rosto ganhou um semblante verdadeiramente assustador.

- Como ousais penetrar assim no meu pensamento? Como ousais insinuar a vossa presença arriscando as vidas nessa insignificante mostra de poder? Foi para isto que invocaram Benzerinagui??



11 de Novembro 2011


O salão de jogo encontra-se silencioso e a atmosfera está carregada com o desenrolar dos acontecimentos. Os jogadores parecem estátuas de mármore, fixos nas suas posições de reverência ao grande Mestre. A respiração foi contida, os gestos reprimidos e as palavras aguardam tempos mais favoráveis para que possam continuar a florir.

Sem mais demoras, os cavaleiros desmontam e ajudam as montadas a avançar pelo terreno lamacento. Os corpos dos animais misturam-se com o negrume da paisagem, com as capas negras das vestes dos generais, com a cor de chumbo que se enraíza até aos ossos de todas as almas.

As gémeas invocaram Benzerinagui numa atitude irreflectida motivada pela audácia de Larniki. Uma personagem teve a ousadia de ir muito para além do que se podia imaginar. Ao enfrentar as gémeas Öllin quando estas se introduziram, de forma totalmente desonesta, numa história que não era sua, Larniki quebrou uma das regras mais sagradas do jogo. As criações dos diferentes jogadores não possuem razão, vontade própria, liberdade de acção ou capacidades que escapem ao controle absoluto dos donos dessas pedras. Nenhuma das personagens de nenhum dos jogadores pode agir, falar, suspirar ou até sonhar. As suas acções estão directamente ligadas ao jogador-escritor que lhes dá vida e que as criou.

As gémeas julgavam-se donas e senhoras de todas as histórias. Apareciam, sem aviso prévio, mascaradas com as cores do ódio, do sangue e da vingança em todas as construções que neste Benzerinagui iam crescendo. Destruíam os enredos, alteravam o rumo dos acontecimentos a seu bel-prazer e semeavam por todas as pedras um veneno muito peculiar.

Larniki não podia ter reagido como o fez. Esse momento transformou para sempre o equilíbrio das forças na mesa de batalha. Como foi possível uma insignificante personagem de uma dessas epopeias realizar tamanha proeza? Afinal, que poderes tão improváveis terá Larniki que lhe permitiu a ousadia de enfrentar quem, supostamente, tudo pode fazer acontecer?

A surpresa gerou o reflexo incondicionado, o reflexo deu origem às palavras que motivaram a interrupção. A ordem das coisas encontra-se definitivamente desalinhada.

- Foi para isto que invocaram Benzerinagui? – insistiu Tzu-Lee-Khan.

As mãos das gémeas continuam juntas bem acima das cabeças. Adivinha-se, pelo tom da sua voz, o que vai na alma do Mestre. Os jogadores aguardam a sua decisão, como estátuas de mármore e marfim. As gémeas resolvem finalmente responder.

- Qualquer que seja a vontade do Mestre, ela acontecerá porque nós entendemos que essa terá de ser a sua vontade. Nada nesta história, nada em todas as histórias de todas as pedras acontece por acaso. Tudo acontece porque nós assim o decidimos. A sua presença aqui deve-se, como tudo aquilo que é desenhado nas folhas brancas espalhadas em cada uma das mesas de jogo, à nossa vontade e ao nosso comando. Nada daquilo que tenha para nos comunicar será uma surpresa. Nada daquilo que julga ter para nos castigar será surpresa para nós. Nada do que arbitre, julgue ou decida será surpresa para nós

- E contudo a vossa situação mudou ao invocarem Benzerinagui! – respondeu Tzu-Lee-Khan. – E contudo, uma simples singela personagem de uma das histórias foi capaz de vos atormentar a razão e o juízo. Uma singela personagem mudou para sempre o equilíbrio das forças entre os jogadores desta mesa de jogo. Ameaçou-vos! Colocou em causa o vosso suposto poder e de uma forma muito inesperada. É patético aquilo que vós pensais poder alcançar através desses vossos atributos… – mas o Mestre Tzu-Lee-Khan não conseguiu terminar mais nenhuma frase.

As gémeas desapareceram, transformaram-se numa gigantesca nuvem negra de fumo que envolveu a figura veneranda do Mestre. Um ciclone varreu de todas as mesas de jogo os participantes, as cartas já lançadas, os triângulos brancos com os nomes de todas as personagens principais das epopeias. As mesas e poltronas voaram pelo tecto despedaçado do salão. Os perfumes, o tempo e os rostos de todas as personagens de todas as histórias ficarão para sempre esquecidos. As matérias-primas necessárias para se criarem as aventuras foram despedaçadas, trituradas pela demência das gémeas escritoras que resolveram tudo destruir. Não contentes com o caos provocado, numa total mostra da sua loucura, as gémeas que são a mesma alma em corpos separados, começaram a guerrear uma com a outra. O sangue saiu-lhes pelos olhos, pelas carnes dilaceradas, pelos cantos feridos das bocas destroçadas e pelos escalpes rasgados ao terem arrancado, uma da outra, os longos cabelos que lhes penteavam as figuras. Esta demência durou séculos sem fim e tudo se manteve delirantemente ausente e em fúria até que o cansaço começou a tomar conta das Öllin.

- Quem é esse Larniki da epopeia do reino de Chover? Que poderes extraordinários existem nele que lhe permitiram confrontar a nossa maldade? Não vimos esta surpresa. Como foi possível não darmos conta desta surpresa? Tudo aquilo que destruímos temos de voltar a recompor. Temos de obter as respostas a estas questões que pela primeira vez nos inquietam.

- Esta é uma sensação nova e estranha. Mas ao regressarmos as coisas já não estarão como as deixámos. Foram tantos os séculos em que nos violentámos que já esquecemos muito daquilo que destruímos.

- Ao retroceder ao instante imediatamente antes àquele em que resolvemos aparecer no reino de Chover, evitaremos a resposta de Larniki e não invocaremos Benzerinagui! A partir daí nada disto terá acontecido. A partir desse momento o jogo continuará como até então mas com esta subtil diferença. De agora em diante teremos de nos precaver pois numa das histórias foi criado um poderoso adversário que não obedece a nenhuma de nossas vontades.

- E isso é, por si só, extremamente atractivo!


O sorriso do herói afastou as nuvens

Benzerinagui foi interrompido

As palavras consagradas aguardam

As poeiras do esquecimento

Acabam com o vencido


As palavras do Mestre são escutadas

A sua vontade manipulada

Pelas gémeas poderosas


As personagens não podem ter razão

Vontade

Liberdade

As personagens não podem falar

Suspirar

Sonhar

Só se assim o jogador (o) decidir


O sorriso de Larniki afastou as nuvens

E tudo isto fez acontecer


As gémeas desapareceram

Numa nuvem de fumo

Furiosas

Despedaçaram perfumes

O tempo

As vontades


Uma da outra arrancaram cabelos

Dilaceraram carnes

Choraram sangue

Cuspiram chamas pela boca

Até o cansaço as vencer


E no instante anterior

Momento mais importante

Decidiram as duas reaparecer

.

.

Sem comentários:

Enviar um comentário