18 de Novembro 2011
As pedras de Novembro vão desvendando partes desta história. Dos confins da existência, lá onde o gigantesco vazio perpetua todos os silêncios e todas as verdades, chega tenuemente a mensagem. Benzerinagui será reiniciado. Apenas as sombras e os silêncios terão conhecimento do que originou esta improvável situação. Apagaram as memórias das gémeas. As poderosas Öllin não guardarão um simples grão de areia do sucedido.
Os séculos regrediram.
O tempo voltou ao instante em que os animais avançam com extrema dificuldade, carregando os mantimentos, as armas, os valorosos cavaleiros e seus generais, carregando Larniki e o futuro rei Hannibas até à longínqua cordilheira de Wawaghan.
O céu não desenhará os olhos e o sorriso maléfico das escritoras.
O cinzento chumbo, bem carregado, continua a não dar tréguas aos viajantes encharcados. Mesmo para os padrões deste reino, a quantidade de água lançada dos céus nos últimos três dias foi fora do comum. Trovoadas constantes iluminam o céu com relâmpagos que se multiplicam às dezenas. Os que por cá habitam dizem que assim acontece desde o dia da tragédia. Desde que o bafo venenoso da besta aqui foi sentido essa primeira vez, toda a região tem sido ainda mais fustigada pelas chuvas eternas, por fortes tempestades eléctricas e por violentos ciclones.
Larniki é o único dos viajantes a quem se descobre um sorriso. O seu pensamento consegue voar para outras paragens bem mais aprazíveis.
Larniki compreende todas as marés, compreende os sonhos e os pesadelos e as viagens. O conselheiro vê para além do agora, entende para além dos momentos, compreende os anseios, os medos e as mensagens invisíveis escondidas em cada rosto e em cada uma das expressões de Hannibas. As águas que descem como rios dos céus de Chover fazem-no feliz.
Larniki lembra-se de quando foi o rio, de quando foi a água e foi cada uma das gotas que fizeram crescer o mítico Marthiris. Lembra-se das histórias contadas por cada pedra do imenso leito. Recorda-se do início da viagem onde o rio nasce, de como a paisagem lhe sorria e acenava, recorda-se dos peregrinos e dos seus sonhos. Lembra-se bem de todos os lugares, de todas as aldeias, vilas, cidades e províncias onde habitou. Lembra-se de como tudo começou, do primeiro sonho onde voou livre como um pássaro, de como o sonho o transformou e de como conseguiu transformar o sonho. Lembra-se dos que nele acreditaram, dos mensageiros perdidos que ajudaram a perpetuar a mensagem primeira, dos que ensinou e dos que, como ele, foram peregrinos dos silêncios. Recorda-se dos locais onde estão escondidos os verdadeiros paraísos e como fazer para os visitar, recorda-se do peso da viagem e da leveza insuportável que esta condição lhe impõe. Lembra-se da luz, do frio, das neblinas. Recorda o amor, a ternura e o calor que só um coração de princesa pode transmitir. Recorda-se dos locais que não visitou mas que dizem conhecê-lo. Lembra-se da lua, dos perfumes, das paisagens floridas das montanhas e dos seus eclipses. Lembra-se dos olhos negros da criança que o viu nascer e que o ajudou a esquecer as dores, a loucura e a fome que sentia. Recorda-se dos pássaros e das estrelas, da música eterna que nascia do útero desses silêncios. Recorda o vento que o atirou para os braços de uma menina princesa nas margens sagradas do rio onde nasceu.
De muito longe se vê o planeta em toda a sua dimensão azul.
As nuvens ocultam todos os reinos que o compõem.
O sorriso de Larniki não passou despercebido ao jovem príncipe Hannibas.
- Porque sorris tio? Porque encontras alegria durante a tempestade?
Como um menino perdido das cidades escondidas, o futuro rei desconhece que ainda é um prisioneiro com histórias por decifrar.
- Prometo que te contarei todas as histórias, tal como elas continuam a ser-nos contadas mesmo agora, enquanto caminhamos. Uma certa manhã, uma dessas histórias deu-me a entender que devia ser o mais discreto dos companheiros numa viagem pois só assim conseguiria vencer todos os desafios da desgraça.
Hannibas não compreendeu. São quase sempre misteriosas as palavras do tio.
- E é por isso que consegues sorrir? É porque te vais lembrando das histórias que conheces? E que histórias são essas que conseguem fazer sorrir?
Larniki olhou para Hannibas e respondeu.
- A tua história será um imenso rochedo, como só nos mais altos cumes de Wawaghan se conseguem encontrar. Sorrio porque consigo vislumbrar o rosto do homem sensato, sábio e corajoso em que tu te transformarás. Sorrio porque vejo o império de Chover reerguido, reconstruído, tão poderoso como a imagem do futuro rei serpente. Sorrio porque existem sinais claros de virtude nas tuas palavras e nas tuas inquietações. Sorrio porque a história vai sendo desdobrada conforme me foi contada no fundo do jovem Marthiris.
Hannibas levanta o braço esquerdo bem alto no ar dando ordens para que a comitiva parasse de avançar. Montado com majestade no seu corcel negro, virou-se para o conselheiro. A manta preta, completamente ensopada, brilhou com o reflexo de relâmpago que acaba de rasgar os céus cinzentos de Chover.
- O que o tio me diz é que consegue antecipar as histórias que estão para acontecer? É esse um dos seus misteriosos poderes, adivinhar o que ainda está para acontecer?
Larniki solta uma sonora gargalhada. Desconcertado, Hannibas vira-se para os mais de mil homens que constituem a comitiva. Os seus irmãos, influenciados pela atitude do tio, começaram também a sorrir e acabaram por contagiar todo o cortejo.
A chuva abrandou de intensidade, o céu aplacou a ira e os ventos serenaram.
Uma imensa gargalhada, cantada em uníssono por mais de mil guerreiros negros, ecoa com clareza na paisagem inóspita junto às margens do lago do Medo.
- Nada disto faz sentido tio! Nada disto faz qualquer sentido. Lamento dizê-lo mas nas suas palavras e nas suas histórias não encontro fios de esperança ou sensatez. O tio fala por enigmas, desenvolve estranhas considerações e agora mesmo acaba de dizer que é capaz de prever as histórias do futuro. Não é possível saber acerca do que ainda está por acontecer. Nos próximos dias agradeço que não me dirija a palavra. Necessito desses dias para tentar encontrar algum sentido em tudo o que me disse desde que saímos de Chover.
Num gesto rápido realizado com a mão direita deu ordens para avançar e a comitiva fez-se ao caminho.
Larniki sabe que os próximos dois anos serão feitos destes confrontos pois eles fazem parte do processo de aprendizagem. As mensagens são parte da estratégia e o crescimento do futuro rei depende disso mesmo. Terá como base estes pressupostos de estranheza e solidão.
Hannibas será como a neblina, será como a luz e o calor que derrete a neblina. Crescerá em silêncio como os rochedos, crescerá com o contributo de todas as pedras e de todas as histórias que nelas se escondem, mesmo a primeira. O futuro rei serpente sofrerá derrotas, sentirá medo, incompreensão e a insustentável angústia da solidão. Aprenderá com as suas dúvidas, suspeitará de quase todas as respostas, optará por caminhos errados antes de obter as soluções desejadas.
Não entende porque é este o seu destino e porque é esta a história que escolheram para si.
Não sabe que o seu nome nasceu numa pequena folha branca em forma de triângulo e que esta repousa no tampo verde de uma vulgar mesa de jogo.
Não sabe que o seu destino se joga com outros destinos como o seu, por entre outros heróis de outros enredos com estranhas e imprevisíveis peripécias.
A mesa onde o seu destino se molda é das mais esclarecidas. De todas as mesas de jogo, esta é a mais equilibrada. Ainda ninguém saiu derrotado, ainda não surgiram desistências e ninguém fraqueja ou dá sinais de cansaço.
Tudo o que até aqui aconteceu é menos de metade do início desse destino.
Um destino secreto encontra-se escondido num pequeno rectângulo cor de musgo.
A palavra está escrita num castanho quente e perfumado.
Esta é a quarta palavra.
Esta é a ocasião para usar o mágico rectângulo, aquele que contém o destino dos heróis de todas as histórias, aquele que pode transformar as epopeias e proporcionar a Benzerinagui mais um aliciante momento de emoção.
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