sexta-feira, 4 de novembro de 2011

MOMENTOS DOIS - 12



4 de Novembro 2011


Os nevoeiros matinais acompanham a comitiva desde que partiram, há dez dias, da destroçada capital do reino. A rainha, intransigente, manteve-se firme na vontade demonstrada em reconstruir tudo aquilo que o monstro destroçou. Deu ordens para que fizessem chegar à capital braços fortes, engenheiros empenhados, arquitectos e construtores capazes de fazer reerguer dos escombros quase metade do império de Chover. A capital está dividida ao meio pelo fosso profundo que foi escavado na noite do voo de Lakis. Essa cicatriz aberta no coração de Chover é visível de todas as janelas da cidadela.

Argenta mantém abertas as portadas da janela do torreão real desde a manhã em que o rei resolveu abraçar o vazio como um falcão. Desde esse dia que a soberana aí coloca uma flor azul colhida nos mais altos picos dos montes serenos pelas fiéis tribos conselheiras de Ighrik. Antes da alvorada, dois mensageiros Ighrik entregam ao cuidado das aias reais a flor das montanhas. A rainha, ao acordar, encontra a flor numa pequena mesa de marfim junto ao seu leito dentro de uma preciosa jarra de cristal. Com todos os cuidados, a rainha cumpre o novo ritual para honrar a memória do esposo desaparecido. A jarra de cristal é assim colocada, com a flor das montanhas, no parapeito da janela do torreão todas as manhãs.

A cidade não dorme. Faz quase um mês que a tragédia aconteceu. Os mortos foram enterrados, os muitos feridos e moribundos foram encaminhados para os improvisados hospitais que se montaram nos planaltos fora das muralhas e dos limites urbanos da capital. Aguardar que o tempo possa sarar todas estas feridas seria dar grande vantagem ao invasor.

A rainha bem cedo demonstrou grande coragem. Entregou os filhos príncipes e o herdeiro do trono de Chover à guarda do valoroso conselheiro Larniki. Hannibas, o futuro rei serpente, e mais de mil fiéis guerreiros e seus generais, acompanham-nos numa longa jornada rumo ao norte do império, até Wawaghan, a mãe de todas as cordilheiras e montanhas. No dia seguinte ao do desastre, já a rainha dava ordens para que não mais se chorasse, para que não mais se passasse o tempo a pensar nas causas de tamanhos infortúnios.

- O nosso mui honrado e poderoso reino de Chover, império maior de entre todos os impérios, é demasiado importante para que percamos tempo precioso. Somos um povo de conquistas, um povo que semeia e domina, um povo capaz de se erguer e defender como nenhum outro povo conhecido. Somos respeitados, temidos e invejados, somos um povo resistente, sábio e dedicado, somos um povo empreendedor e que destas horas de tristeza retirará as sementes que farão germinar séculos inteiros de prosperidade. Hoje damos início ao primeiro dia desses séculos de glória. Dentro de menos de dois anos Hannibas aqui será coroado grande rei serpente de Chover. A nossa capital estará tão próspera que o novo rei terá dificuldade em a reconhecer, e as águas eternas dos nossos céus virão beijar as ruas e avenidas com um orgulho do tamanho do reino.

O povo limpou as lágrimas, ergueu-se, contemplou a chuva inclemente, abriu os braços e recebeu dos céus as águas cristalinas como uma bênção. As palavras da rainha ecoaram com rapidez por todo o império. Foram escritas, lidas e transmitidas como ensinamento aos mais desalentados. Várias equipas de resgate foram formadas e chegaram às centenas à capital. Outras tantas foram enviadas, numa rapidez improvável, para as cidades-estado destruídas.

Desde que Argenta Kostarinadis tomou a seu cargo as rédeas da montada do império, desde o momento em que as suas palavras se escutaram no dia seguinte ao da morte do seu esposo e senhor, a esperança do povo ganhou uma luz inusitada. Em todos os locais onde o trabalho árduo de limpeza e reedificação se vai realizando, a rainha faz por comparecer, em todos os lugares onde os feridos e estropiados recebem os necessários cuidados e atenção, a rainha faz por comparecer, em todos os locais onde os engenheiros, arquitectos e projectistas se reúnem para decidir, a rainha faz por comparecer, em todos os locais onde as famílias perderam a esperança, os mais jovens os seus pais, os mais idosos a vontade de viver, a rainha faz por comparecer, em todos os locais onde as ameaças dos ancestrais inimigos do reino possam ter razão para existir, a rainha faz por comparecer, em todos os locais onde as dificuldades de comunicação e apoio às tribos mais longínquas mais se fazem sentir, a rainha faz por comparecer. No curto espaço de um ano de Chover, Argenta ficou conhecida por todo o império como a rainha das pedras, da luz e das palavras. Nunca antes um governante conseguira obter do povo mais que dois cognomes. Esse feito apenas fora alcançado pelo primeiro dos reis serpente.

Rakis Kostarinadis ficou conhecido como rei dos sentidos e dos tambores. Foi ele o único a quem os súbditos reais baptizaram com dois cognomes.

Zaffiris ficou conhecido para sempre como o rei das madrugadas.

Lakis como o rei marinheiro de Chover.

Hannibas, futuro rei serpente, herdeiro dos mares, das pedras, da luz e das palavras, receberá das mãos de sua mãe um império revigorado e um povo preparado para os séculos de glória que se seguirão.

Por agora o caminho leva-o pelas margens mais ocidentais do lago do Medo, junto às fronteiras da província de Akhor com a zona intermédia de Treghirkh onde chegarão de madrugada.


Dos nevoeiros matinais

Nasceu a firmeza de Argenta

Do fosso profundo

Cicatriz escavada na aurora

Nasceu a coragem de Argenta


Os mensageiros de Ighrik

Colhem a flor das montanhas

Na janela do torreão

Honra-se a memória do rei

Por vontade de Argenta

No dia seguinte ao desastre

O povo escutou

Sábias palavras de Argenta


As lágrimas secaram

Os braços se abriram

Dos céus receberam

Águas cristalinas

Bênção de Argenta


Rainha das pedras

Da luz

Das palavras

Entregará a Hannibas

Um império revigorado

Para séculos de glória

Audácia de Argenta

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