sexta-feira, 16 de março de 2012

MOMENTOS DOIS - 43



16 de Março de 2012

Hannibas avança com todo o cuidado através dos imensos corredores gelados do templo. O seu corpo azul contrasta fortemente com a brancura que reveste o interior da montanha. O lenço que lhe tapa a vista, colocado em volta da cabeça, parece que a separa em duas metades mimetizando-lhe o centro do rosto que se funde com a mãe-montanha.
O tecto invisível do mosteiro desceu tanto que obrigou o peregrino a assumir a condição mais severa de penitente. O peito desce ao chão e de corpo deitado arrasta-se nesse espaço exíguo por onde mal consegue passar. Parece agora voar no pavimento de gelo ao ensaiar com os braços os movimentos que lhe permitem deslocar-se. Conquista metro a metro o caminho. Nessa difícil condição avançar dura uma pequena eternidade. A pele escamada tem sido uma aliada nesta difícil tarefa. Ao rastejar o jovem príncipe escuta ao longe a balada de Baharhvatin que não desiste de o acompanhar. A voz melodiosa de Sheridan segue-o mais afastada do que anteriormente, mas segue-o, fazendo-lhe recordar os dias, as noites e as madrugadas que têm para partilhar.
A cor das palavras é igual, o sonho que se entoa desenha-se com a mesma lucidez com que se conta esta história azul.
Ao arrastar-se pelo chão do mosteiro, as primeiras palavras da história regressam à sua memória e ecoam pelas invisíveis paredes da construção.
- Palavra que não pensavas ter de viajar até tão distantes paisagens. Como agora sabes, as histórias constroem-se ao seu próprio ritmo e as personagens surgem, invariavelmente, sem aviso prévio. Apenas a luz, o tempo impiedoso e as cores que os objectos se encarregam de reflectir, são imutáveis. Percebes agora, Hannibas, qual a razão porque o muro que protege esta moradia dá uma frágil sensação de segurança? Percebes agora, Hannibas, porque não consegues adivinhar vida nas cercanias, no pátio e porque destas vidraças nada é visível do exterior?
O peregrino penitente escuta a voz da lei austera. Deitado, quase emparedado neste gelo infinito entre o chão e o tecto da construção, recorda o início da epopeia quando ainda não era, quando a história ainda não era a sua história, quando o tempo que tudo faz acontecer ainda mal tinha nascido. E responde:
- O mundo do lado de fora deste edifício continua frágil na construção que os homens lhe foram acrescentando. As suas vidas parecem cada vez mais frágeis e enegrecidas. Foram construindo essa espécie de casulos, conchas ou cascas pensadas para sua protecção. Procuram por um guia que os ensine, que os faça crescer e os faça acreditar de novo num destino com sentido.
E a voz da lei austera pergunta novamente:
- Sabes como manter, como preservar as suas lágrimas, os seus desesperos, sabes como tratar a solidão e os seus receios?
E o jovem príncipe responde:
- Conforme as águas, as marés e os ventos. Mantê-las-ei com todos os cuidados oferecendo-lhes bebidas doces e néctares perfumados com carinho. Servir-lhes-ei tudo o que necessitarem para se manterem sempre jovens e vigorosos, para que consigam alcançar todos os sonhos e de todas as fraquezas fazer forças.
- E o que te impede de seres um outro anónimo caminhante?
A resposta do futuro rei-serpente foi imediata.
- Eu não avanço sem conhecer esta causa. Encontrei todas as histórias. Li todas as histórias sem excepção, até a primeira. Faço parte das histórias, com elas construi a minha que agora edifico, exactamente como aconteceu com a primeira. Eu sou o momento. Eu sou a luz e a água, sou o caminho e a história que ajudarão a construir.
E a voz da lei austera volta a perguntar:
- Mas os dias fogem, desaparecem pelos intervalos dos dedos como a fina areia que se depositou nas praias do tempo. O que podes fazer para impedir o desaparecimento das histórias desses dias, esses segredos invisíveis que se escondem como ilhas no interior de cada peregrino?
Hannibas volta a responder:
- Nada nesta canção é sobre mim. Assim aprendi, assim ensinarei. Deverão saber escutar as palavras de quem serão. Deverão avançar corajosamente pelas pedras dos verbos partilhados. Deverão escrever as suas histórias com as cores da cinza como aconteceu com a primeira de todas as histórias nessa longínqua primeira vez.
As paredes gigantescas da construção recuaram e o pesado tecto gelado do mosteiro volta a dar espaço ao penitente peregrino azul. O coração de Wawaghan vibra melodioso dentro de um imenso cristal de gelo iluminado que surgiu no centro invisível do labirinto sagrado. Hannibas não pode ver, só sentir. Os seus olhos permanecem tapados pelo lenço branco imaculado que o xamã Zharkhanis lhe colocou na entrada do mosteiro. O coração do jovem bate ao mesmo ritmo do gigantesco coração da montanha, bate ao mesmo ritmo do coração de Zharkhanis, bate ao ritmo do coração de Argenta, a rainha sua mãe, bate ao mesmo compasso do coração de todos os habitantes do império de Chover e bate ao mesmo ritmo do coração apaixonado de Sheridan cujo rosto brilha por cima do coração vermelho de Wawaghan. O príncipe ergue-se da sua posição de penitente. O templo recebe em todas as salas, corredores, salões, paredes, pilastras, portas e portões a melodiosa música de Baharhvatin cantada pela formosa Sheridan. O futuro rei-serpente avança decidido na direcção do coração da montanha. Este é o momento em que o seu corpo azul irá pintar de bronze o cofre no vermelho.
Uma luz intensa ilumina-lhe o rosto.
O lenço acaba de se transformar em luz para iluminar o rosto do jovem príncipe.
Hannibas vê Sheridan, vê o coração vermelho de Wawaghan que chama por si, que bate por si. O seu coração bate ao mesmo ritmo sagrado de todas as coisas e sente o ritmo sagrado com que vibram todas as coisas.
Este é o momento de avançar.
Este é o momento em que o coração da mãe-montanha se pinta de bronze, se transforma em cofre e dá a conhecer a Hannibas todas as palavras, as que voaram pelas mais longínquas galáxias, as que contêm todos os segredos, as que já não pertencem a qualquer pedra, as que fazem os universos fervilhar, as que alimentam e definem as estratégias, as que sabem escutar, as que lhe dizem quem será, as que já foram lidas, estudadas e visionadas em todos os Benzerinaguis acontecidos, no que acontece e nos que estão por acontecer, as que destroem muralhas infinitas, as que teimam em não serenar, as que cresceram neste e com este templo sagrado, as que só se revelam nas madrugadas, as que viram o ontem e o amanhã, as loucas, as improváveis, as invencíveis e as que o tornarão imortal.
Este é o momento em que se derrotam os dragões e as gémeas escritoras, em que se derrotam os desertos e todos os venenos.
Este é o momento em que o céu se pinta de azul, em que o azul pinta de bronze o coração vermelho da montanha.
Tudo o que se encontrava destruído, tudo o que se escondia por debaixo dos escombros foi corrigido.
Os segredos da Hglira da casa Kostarinadis são pertença de Hannibas. Este é o dia do seu décimo sexto aniversário. A invencibilidade e imortalidade fazem parte do coração da montanha, pertencem ao sagrado coração vermelho da mãe-montanha e foram-lhe oferecidas. Este é o inestimável segredo, tesouro mais valioso do grande império de Chover.
- O meu nome é Hannibas. Sou o herdeiro azul que honrará este legado de meu pai e meus avós.
- O meu nome é Hannibas. Sou a sétima chave, aquela que abre a derradeira porta do cofre de bronze, o próprio coração da mãe-montanha.
- O meu nome é Hannibas, nome de herói de todas as epopeias, vencedor dos fantasmas, vencedor das batalhas contra todos os demónios.
- O meu nome é Hannibas, sou aquele que altera todas as epopeias, quem lhes providencia auxílio para que não se pintem com as cores da escuridão.
- O meu nome é Hannibas, príncipe coroado rei, sou aquele que recebeu no interior da montanha este presente sem igual no dia do décimo sexto aniversário, agora sou invisível, agora sou imortal.
- O meu nome é Hannibas, quarto rei-serpente de Chover, sou aquele que conhece o rosto de todos os escritores, o que conhece todas as histórias, todos os lugares, todas as paisagens, todos os verbos e todos os momentos.
- O meu nome é Hannibas, sou todos aqueles que me transportaram até aqui, que me ajudaram a chegar até aqui, sou a diferença entre sonho e realidade, sou o rio, o sol e a nascente, sou a luz, as sombras, as neblinas, sou o novo princípio desta história.
- O meu nome é Hannibas, sou o que antes de renascer percorreu este caminho como penitente, como peregrino penitente, como água do Marthiris, como as gotas de chuva que são as lágrimas eternas e sagradas do rio, como espuma das salgadas marés do Centhaurydis, como vento, como ciclone, como partícula infinitésima de cristal de gelo, como pássaro, como princípio, meio e fim de todas as coisas.
- O meu nome é Hannibas, sou aquele que abre os braços e recebe, aquele que entende as letras e palavras desta história como uma bênção, esta história que não é sua mas é a sua história, sou aquele que a perpetuará como mensageiro abnegado, que a partilhará com o povo de Chover preparando-o para os séculos de glória que se seguirão.
- O meu nome é Hannibas, sou a memória de Lakis e a vontade de Argenta, rainha minha mãe, sou a alma do meu povo, do império que represento e defendo, que alimento e a quem dou de beber, sou todas as suas palavras e sou o fruto azulado de todas essas histórias.
- O meu nome é Hannibas, faço parte da primeira história, da primeira de todas as histórias, sou palavra da epopeia inicial, um seu humilde viajante, um pedaço dessa luz, dessa ideia, desse destino.
- O meu nome é Hannibas, sou filho de Lakis e Argenta, neto de Ravehrthatis, bisneto de Rakis, sou aquele que se veio entregar a estes ventos gelados. Somos lâminas de luz em corpos de tempos diferentes, viandantes que passearam por todos os lugares em todos os momentos.
- O meu nome é Hannibas, rei alado, rei serpente, rei azul escamado. Sou aquele que Larniki ensinou, aquele que conhece a vontade do mestre conselheiro, aquele que, como o mestre, entende a raiz dos sofrimentos, as cores de todas as esperanças e os ciclos de todos os elementos.
- O meu nome é Hannibas, que nesta epopeia se formou maior que todas as pedras, como a montanha, como este todo invisível criado no seu interior e que explodiu dando origem ao lado de fora das coisas, derrotando a razão de todas as inexistências.
- O meu nome é Hannibas, em três dias enfrentei demónios que quase me secaram a esperança, do passado recebi tantas memórias, do futuro recebi tantos segredos e neste presente, neste agora eu renasci.
- O meu nome é Hannibas, sou aquele que escuta os sinais do silêncio, aquele que avança pelo vazio onde vivem os sons da natureza, aquele que não pediu para ser pássaro, nem rei nem herói.
- O meu nome é Hannibas, sou aquele para quem tempo e sonho são abstractos, sou aquele que sabe que esta viagem continua e que nunca terá fim.

*

As paredes do salão de jogo pararam de avançar. Ninguém parece ter notado.
Os que escreviam com medo neste Benzerinagui, desde que o movimento começou, deixaram de escrever. A batalha disputada com a arte das suas penas está perdida. Deixaram-se derrotar pelo medo, pelo receio, as palavras secaram, deixaram de ser desenhadas servindo-lhes a derrota nesta aventura. Os jogadores escritores não entendem o que se passa. Mas que motivo têm para tentar compreender o que quer que seja?
Restam dois escritores na última mesa. Aqui permanecerão por mais alguns séculos. As cores dos seus tempos desafiam a lógica, que não existe, desafiam o medo, que não os consome, desafiam a dor, que não sentem, e escrevem exactamente o contrário daquilo que todos julgariam ser correcto para tentar obter a vitória final. Ao escreverem fogem de todos aqueles que os seguiam e derrotam todos os que os seguiam. Aprendem com as lições encerradas nos poemas, bebem as palavras que deles nascem e assim se purificam. Jogaram com palavras que os outros não esperavam, jogaram com a alma dos segredos, essas mensagens escondidas nos passos que os adversários não se atreveram a cumprir.
O que se arquiva no cofre de bronze é a eternidade, essa perpétua defensora do mais íntimo segredo.
- Quem somos?
- Quem sou?
- Conhecerei todos os eus que me constroem? Conhecerei os eus que me ameaçam, os eus que me ensinam, os que se escondem à beira do precipício, os que peregrinam no topo das montanhas e olham de frente o próprio sonho?
Se somos cegos devemos avançar um passo de cada vez, subir um degrau de cada vez, viver um só dia de cada vez.
Os habitantes de Chover querem conhecer a verdade, mas a verdade não existe, é apenas ilusão. O tempo não existe, é apenas ilusão.
Hannibas quer as asas só para si, mais um momento. Quer partir numa viagem só dele para tentar perceber o tempo, o espaço, a montanha, para se conhecer, para se entender, para esconder todas as pedras de todas as histórias. Quer partir numa viagem só sua, sem pontes, sem defesas e sem nenhum dos sonhos desta epopeia, a não ser esta estranha cegueira que o ilumina.
Desapareceu!
Foi até esse lugar onde as sombras não existem e onde as regras são quebradas.
Partiu à procura do seu sonho, da sua própria história.

*

- Porquê azul? Porquê tantos silêncios estendidos ao longo destes muros que atravesso? Porquê este silêncio insuportável dos rios que já vivi? Eu queria ser o sonhador e não mais aquele que continua a escutar. Eu queria ser rei-escritor e não aquele que ouve o ruído de todos os seres vivos e dos inertes. Eu queria ser vencedor do Benzerinagui onde fui criado e onde se conta no escuro esta aventura. Queria ser aquele que descreve as cores do tempo, que desafia a lógica, que descreve os medos presentes em todas as dores que nos consomem. Queria estar sentado à mesa de jogo, fazer acontecer esta epopeia em todas as holoesferas espalhadas por todos os universos conhecidos e por conhecer. Queria ser aquele que recebe e dá a conhecer a alma dos segredos, aquele que foge das emboscadas dos adversários, aquele que veste as palavras com ilusões tão palpáveis que até lhes cheiramos as consequências dos detalhes.
E o tempo e o sonho e as palavras são abstractos, como esta história, como todas as histórias de todos os Benzerinaguis, inclusive a primeira.
- Não mudes! Tu que me escreves e me crias, não mudes! Porque mudas? Se o fizeres deixarei de conhecer os meus eus, deixarei de ser capaz de sonhar, deixarei de ser capaz de devolver a esperança e a glória ao império. Peço-te de coração nas mãos que não mudes! Continua a deixar chegar essas palavras, deixar chegar a verdade e a esperança. Continua a procurar nas pedras as histórias, porque viver sem procurar é deixar de acreditar na alma das pedras e em todos os segredos que elas nos ensinam.


F I M 

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