9
de Março de 2012
Zharkhanis encontra-se sentado à espera de Hannibas
junto a uma passagem muito estreita que dá acesso à entrada do templo. Os
ventos gelados e cortantes são os únicos habitantes desta região invisível de
Wawaghan.
A montanha está nervosa, o seu coração bate
descompassado como nunca aconteceu e chega a parar por breves instantes. Grande
parte da mãe-montanha desaba nesse momento numa brancura infinita e luminosa
que engole o corpo azul do jovem príncipe.
O coração de Zharkhanis também parou de bater após a
hecatombe.
Ninguém é mais mestre de coisa alguma.
Ninguém conhece os sonhos como a montanha-mãe pois é
lá que eles vivem, e agora partiram. Nesta queda desapareceram milhões de
poemas, milhares de milhões de histórias e parte importante da primeira.
Recebo a novidade com o coração parado, mas ainda
vivo.
O tempo parou nesta branca e luminosa despedida.
- O mar é agora o meu corpo. Deixei de voar pelas
estrelas, passei a ser o grande mar onde voam as estrelas. O mar é o caminho, a
origem, o fim e o destino. Eu não queria ser o mar, desejei ser o pássaro
peregrino, desejei habitar de novo o corpo do pássaro peregrino e voei pelos
céus, por cima dos glaciares e vales de Wawaghan, até encontrar a origem de
quem sou, de quem já não sou neste momento. Na montanha onde respiro, onde me
vejo e reconheço, onde me escondo e medito, mergulhei nas águas misteriosas,
desci ao coração das pedras, li as suas histórias, todas as histórias, e
meditei. Recebi as memórias perdidas da montanha. As histórias transportaram-me
para lá das neblinas, para lá de todas as estrelas, para lá de todas as
galáxias e de todos os desertos. As minhas asas transformaram-me no maior dos
peregrinos, naquele que conhece o tempo e a lembrança, naquele que sabe quem é,
quem foi e quem será.
A linhagem nobre do herói da epopeia permitiu-lhe
receber a protecção de Argenta, a rainha sua mãe. Foi por ela resgatado, salvo
e alimentado com todo o amor e afecto.
- Não te deixes abater pela aparente destruição de
todas estas histórias, meu querido Hannibas. Acredita em mim e no que te digo.
Agora que o tempo parou e as neves brancas de Wawaghan te escondem, aproveita
para meditar. O império precisa de ti, precisa da tua história, precisa que lhe
contes as palavras eternas da primeira. Serás o seu guia iluminado, o
verdadeiro guia iluminado. As mentiras serão apagadas, os destinos ficarão
resguardados e serão reconstruídos com base na verdade das tuas palavras. O mar
é de novo o teu corpo. Deixaste de voar pelas estrelas e passaste a ser o
grande mar onde voam as estrelas. És o caminho, a origem, o fim e o princípio e
tens a vida inteira para nos ensinar.
Foram muitos os dias que caminhou, com os olhos
desprotegidos, pela imensidão gelada, branca e luminosa de Wawaghan acabando
por cegar.
O tempo permanece silencioso debaixo de tanta neve,
de tanto gelo, de tanto azul.
O Centaurydhis deixou de ser o mar imenso que banha
a costa sul do grande império de Chover.
Hannibas é agora o Centaurydhis, é agora a dimensão
líquida das neves eternas de Wawaghan. Hannibas é agora presente, passado e
futuro de todas as histórias, é o caminho, a origem, o fim e o princípio. Dele
nascem as nuvens que vivem nos céus de Chover, delas caem as chuvas e as neves
perpétuas que dão corpo ao Marthiris, que dão corpo ao Wirwih, ao Neda, ao
Syhanuk, ao Nidishikhan e a todos os outros afluentes que alimentam os povos do
império e que depois regressam carregados de histórias à foz onde nasceram.
Os jogadores estão muito nervosos. A tinta já não
flui de suas penas como até aqui. Olham-se aflitos, inquietos, expectantes. A
notícia veiculada alterou-lhes a concentração e o rumo das histórias.
O meu outro eu entregou-me uma mensagem num pequeno
papel dobrado em quatro. Depositou-a no topo do segundo monte de papéis que se
encontram amontoados à minha frente e logo regressou ao trabalho.
Esta história não me pertence. Continuo nesta nobre
tarefa sem saber como aqui cheguei. Todas as palavras, todas as paisagens, os
enredos e todas as personagens se foram apresentando desde o início do jogo. Eu
mais não fiz que os receber e, tal como se ofereceram, os descrevi.
Sinto que nada mais é igual ao que já foi. O medo
passou a estar presente no salão de jogo gerando uma sentida irrequietude. Quem
aparenta estar imune à situação é a gémea escritora. O seu rosto ganhou cores,
o cabelo brilho e a sua pena acrescenta palavras novas ao enredo num ritmo
frenético que faz crescer a montanha de folhas onde as desenha.
As paredes avançam. Agora todos o sabem. O vencedor
desta mesa tem de ser declarado brevemente ou nada do que aqui se escreve terá
acontecido.
Eu não escapo à nefasta influência dessa
possibilidade.
Quem conseguirá travar o lento mas metódico avanço das
paredes?
Para quê tanta inspiração, tanta transpiração na
descrição de tantas epopeias, de tantas aventuras, se nenhuma destas histórias
existirá no futuro deste Benzerinagui? Será como se nunca tivessem nascido.
- Caro adversário, o tempo não existe, é apenas
ilusão. Assim o escrevi, assim o escreve e escreverá. Assim o recordo. Este
Benzerinagui, como todos, é um mistério. O seu objectivo é um mistério que
ninguém conhece, nem mesmo o grande mestre Tsu-Lee-Khan. Este é o momento de
viragem. Todas as histórias estão ameaçadas. Acontece assim desde que o jogo
foi criado pelo bisavô de todos os tempos. As palavras que se escrevem em todos
eles são continuação da primeira história vencedora, a primeira de todas as
histórias. Assim o recordo. A principal virtude do jogador-escritor é a de nunca
pensar na vitória e deixar correr a epopeia ao sabor da tinta da pena. Tem de
ser humilde e generoso para que, através da sua mão abnegada, cresçam folhas na
igual dimensão desse poema. Depois de ler estas palavras deve transcrevê-las
para que façam parte da sua história que fará parte da minha. As palavras são
suas e passarão a ser fortes como mais nenhuma. Esta pequena aliança unirá o
tempo nas nossas histórias, tempo que, relembro, não existe, é apenas ilusão.
A mensagem do meu outro eu já faz parte desta
história, e é também parte da sua.
Estamos mais fortes, unidos para enfrentar este
momento de viragem.
O Benzerinagui é um jogo complexo, inconstante e
extremamente imprevisível.
A qualquer momento os ventos podem soprar em
estranhas direcções, as luzes podem apagar-se, as montanhas podem ruir e os
heróis podem acabar derrotados pelo pérfido desejo de uma fria e cruel
adversária.
O coração da montanha
Bate
Descompassado
Falha
O coração da montanha
Pára
Por instantes
Desaba
Numa luminosa brancura
O mar é o meu corpo
Passei a ser mar
Caminho
Onde voam as estrelas
Na montanha
Respiro
Reconheço-me
Medito
Escondido
Medito
Leio as histórias
Junto às pedras
Que as arquivam
Voo
Para lá das neblinas
Para lá das estrelas
Para lá de todas as galáxias
Dos desertos
Conheço o tempo
A lembrança
Sei quem sou
Quem fui
Quem serei
Debaixo deste branco
Deste azul
O tempo permanece silencioso
Tudo é imenso
Eterno
Tudo é fim
E princípio
Esta nunca foi a minha história
Tudo o que aqui se conta
Tudo o que aqui se canta
É como o tempo
Não existe
É apenas ilusão
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