2
de Março de 2012
Resgato à montanha a primeira das pedras de Março.
A luz é outra. As paredes do salão continuam
imperturbáveis no seu lento movimento.
Resgato à primeira pedra estas palavras da história.
O silêncio é como o espaço vazio que mantém os
elementos em sentido e esta história constrói-se desse silêncio. Sem ele,
nenhuma pedra teria acontecido.
Escuto os passos de alguém que avança com todo o
cuidado pelas escarpas geladas da mãe-montanha. Escuto a neve ranger baixinho.
Comunica-me a presença do viajante a menos de uma hora daqui.
Desde que Wawaghan existe, os peregrinos contam os
dias que faltam até esse momento único em que viajarão até um dos mais altos
cumes da cordilheira. Ela passará a fazer parte deles, será como uma chave
mestra que lhes facultará a iluminação necessária para finalmente entenderem a
história.
Como as pedras que a ajudaram a crescer, os
peregrinos são derrotados, são transformados, são ameaçados, são fustigados por
cortantes ciclones gelados, por avalanches, pela escuridão, são atacados por
matilhas de lobos brancos, são atirados como poeira para as lamas eternas do
esquecimento de onde poucos conseguem regressar. São vítimas dos mais negros
pensamentos e das memórias mais cruéis, são votados ao mais triste dos
abandonos, ao mais gelado, sombrio e triste de todos os abandonos até que,
finalmente, quando a alma se prepara para desistir, escutam o coração vibrante
da montanha-mãe.
Imperturbável, serena, perpétua, conta-lhes partes
da história primeira, conta-lhes como sabia que a iriam escutar. Os peregrinos
passam a ser suas testemunhas, passam a fazer parte da sua história e nada mais
interessa.
A partir desse momento tudo é diferente.
O peregrino resgata à montanha as palavras da
primeira história.
O silêncio invade o peregrino que compreende o valor
ímpar dessa riqueza.
A palavra invade o peregrino que entende o valor
único dessa mensagem.
A luz branca cega o peregrino que já não necessita
dos olhos para vislumbrar.
Um calor húmido, morno, invade o peregrino que ajuda
a manter o universo em sentido.
O céu enfeita-se com o rosto do peregrino que
ilumina Wawaghan com um sorriso.
O tempo delicado é retirado ao peregrino que deixa,
por momentos, de existir.
O peregino passa a fazer parte de todos os tempos,
de todos os sonhos e é agora parte importante dos ciclos de todos os elementos.
As pedras da montanha-mãe iluminam-se por instantes
como sempre acontece quando nasce um universo.
Uma nova pedra é depositada no cume onde o peregrino
descansou.
O peregrino desperta do sonho que o visitou esta
noite com um delicado beijo da sua menina-princesa.
Sheridan canta a balada de seu pai junto ao rosto
azul do futuro rei-serpente. Brinca com os seus cabelos, passeia os dedos finos
e tatuados pelo rosto de Hannibas que desconhece o local onde se encontra. A
menina-princesa tratou com todo o amor e carinho as asas ensanguentadas do
jovem príncipe que apenas consegue discernir uma névoa esbranquiçada ao seu
redor. Está fraco, ferido, cansado, e esta cegueira súbita não o deixa ver o
rosto de Sheridan. A menina-princesa tratou com todo o amor e carinho mais de
mil feridas do corpo de Hannibas. Limpou-lhe o rosto, o peito, os joelhos, os
pés e as pernas cansadas. Manteve-o escondido na sua morada todo este tempo,
aqui o alimentou de histórias servindo-lhe, essencialmente, as partes mais
importantes da primeira em forma de canção. Sheridan derreteu com as mãos
ferventes as neves mais puras da montanha, que passaram a água, que passaram a
vapor e a água novamente. Sheridan voltou a mergulhar as mãos nas águas mornas
e massajou o corpo derrotado do príncipe azul. Por momentos a pele escamada e
fria de Hannibas voltou a ser a mesma pele desprotegida com que nasceu e
Sheridan beijou todos os vales, todos os rios e todas as montanhas desse corpo,
vezes e vezes sem conta. A chave do coração de Sheridan apareceu no coração de
Hannibas. A menina-princesa voltou a mergulhar as mãos tatuadas na água morna
nascida das neves de Wawaghan e por mais trezentas vezes massajou o corpo do
príncipe, beijou todos os vales, todos os rios e todas as montanhas desse corpo
até que, com o último desses beijos, o peregrino despertou do sonho que o
invadiu.
- Estou cego! Desejava ver-te, olhar o teu rosto,
saber de que cor se veste o teu sorriso e a tua bondade. Porque não me
respondes? Porque me queres assim tanto se quase nada tenho para oferecer? A
minha história encontrou a tua porque assim estava escrito na pedra da primeira.
Sinto o teu corpo, o teu perfume, a tua alma na minha e o teu coração no meu,
mas não te consigo ver, meu amor. Esta luminosa brancura é o que me resta. O
teu carinho salvou-me, mais uma vez, talvez a última vez. Mas que herói é este
que se deixa tantas vezes derrotar? Disseram-me para dar uso às asas nesta
parte do caminho. Ao mosteiro de Zharkhanis só o peregrino penitente e despido
pode aceder, e como tal assim o fiz. Fui derrotado! Durante esta fase da
jornada o silêncio invadiu-me e quase enlouqueci. E como era importante saber
escutar esse silêncio! Com ele fui capaz de aceder à primeira de todas as palavras
e pela primeira vez entendi o significado da mensagem. Desde então ceguei.
Primeiro, com a escuridão servida por uma súbita avalanche que me cobriu,
depois, com o ataque feroz de uma dezena de lobos da montanha. A primeira
palavra que me veio à memória foi essa palavra primeira que repeti centenas de vezes
durante a luta até que uma luz branca, intensa, fortíssima, saiu de mim e
destroçou em pedaços os inocentes animais servindo-me nova cor a esta cegueira.
Estou cego! Desejava ver-te, olhar o teu rosto e ver-te verdadeiramente sem ter
de te tocar. Por ti irei escrever o que falta desta história, nem que todas as
paredes do universo avancem sobre nós à velocidade de todos os silêncios!
Hannibas deixou de sentir Sheridan após esse último
beijo.
As asas estão revigoradas, saradas, fortes e
resistentes.
O corpo voltou a adquirir a protecção azul escamada
de serpente.
A balada de Baharhvatin, cantada pela voz melodiosa
de Sheridan, foi substituída pelo poder do silêncio.
O jovem príncipe tem de cumprir a promessa
realizada. Tem de conseguir escrever o que falta da história para vencer todas
as paredes do universo.
A neve range com maior nitidez.
Volto a escutar os passos de alguém que avança
cuidadosamente pelas escarpas geladas da montanha-mãe. O coração de Wawaghan
vibra na mesma frequência da pele azul texturada de meu sobrinho. É assim que
ele sente este mosteiro invisível onde me abrigo e do qual sou guardião, aqui,
onde o tempo não existe, é apenas ilusão. Estes são os seus passos. Só ele,
neste momento, é capaz de aqui chegar. Só ele será capaz de responder
correctamente às questões que lhe serão colocadas pela voz da lei austera, como
dessa primeira vez.
Aqui não existem regras mas todos os que aqui
chegaram procederam de acordo com elas.
Venceram silêncios e venceram as histórias de tantas
outras pedras como fazem os vencedores do lendário jogo Benzerinagui.
Aqui se resgatará a última pedra da montanha.
Chover terá uma longa e próspera história pela
frente, assim Hannibas saiba escutar as vozes e as histórias guardadas no seu
coração.
Uma história
Construída com o poder dos silêncios
Escuta todos os passos
Sente a presença dos viajantes
Peregrinos
Uma história
Cresce com as pedras
Nas pedras
É votada ao mais triste abandono
Onde escuta o coração vibrante da montanha
Uma história
Invadida pelo silêncio
Que invade o peregrino
Sabe que será escutada
Pelo cego peregrino
Uma história
Faz parte do tempo
Faz parte dos sonhos
Faz parte importante dos ciclos
De todos os elementos
Uma história
Contada com amor
Tratada com amor e carinho
Acontece no coração da montanha
Nasce no coração da montanha
Uma história
Encontra outra história
Porque uma outra assim quis
Corpo
Perfume
Alma
Corações partilhados
Nas neves de Wawaghan
Uma história
Escrever o que falta da história
Hannibas
Despertou do sonho
Que o visitou
Cumprirá a promessa final
Escrever o que falta da história
Com amor
Vencer o poder inaudito
Das paredes do universo
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