sábado, 14 de janeiro de 2012

MOMENTOS DOIS - 28


8 de Janeiro de 2012

Em todas as histórias enfrentamos inimigos invisíveis, percorremos milhares de etapas, apertamos os nossos corpos de combatentes uns contra os outros e atravessamos a vau a correnteza dos rios. Muitos morrem como ratos vítimas das emboscadas que os impedem de desertar. Colocam-nos armas nas mãos e avançamos para a frente das batalhas onde corremos uns contra os outros tendo a morte como única aliada, essa donzela gelada a quem poucos conseguem escapar. Rastejamos nas lamas fazendo dos corpos fronteira, símbolos intransponíveis de esperança e coragem. Fazemos do nosso corpo um corpo de herói e assim nos alimentamos de esperança nesses campos de batalhas mantendo vivas todas as histórias e todos os tempos dessas lutas. A morte esconde-se contente no centro dos combates, avança às arrecuas enganando tudo e todos, espalhando o seu odor noite e dia sem parar. Os heróis enfrentam-se, recordam tudo o que lhes ensinaram os avós, abrigados pelas sombras, pela escuridão, pela neblina. Matam-se uns aos outros, enganam-se utilizando tácticas brutais em que o tempo é o mais precioso elemento. Os covis que escavaram para se protegerem uns dos outros são cada vez mais fundos, escuros e sombrios. O dragão negro avança sorrateiro por entre os cadáveres dos combatentes de cada exército. A importância dos silêncios entre os espaços onde se preparam mais combates é vital. Do céu cai a recordação de cada morte como história perdida no interior do coração das pedras. Traições emergem na luta pela sobrevivência em ambos os lados da barricada. O dragão negro entretém-se a fornecer sonhos impossíveis aos combatentes mas isso não os impede de viverem todos os instantes como se fosse o último momento das suas histórias. O perigo é cada vez maior, os guerreiros são colocados novamente nos campos de batalha, avançam camuflados no meio dos companheiros, comprimidos uns contra os outros nos lamaçais, nas selvas, nos desertos. Contam-se mentiras em forma de segredos, juram-se palavras e actos impossíveis, jogam-se os dados do destino como pequenas peças iluminadas que acabam quase sempre esmagadas pelo imenso poder do nevoeiro. Na longa jornada deste herói, aparece uma menina-princesa para lhe contar a verdadeira história. O herói, cego e cansado, perde a princesa de vista, perde os amigos que invejam o seu amor, perde o amor da princesa e dos amigos, perde a esperança ao matar sem descanso os inimigos no campo das batalhas e volta a ser a ilha que sempre foi. Mas a menina-princesa acredita no coração cansado do seu herói e o herói volta a sentir o calor infinito do coração da sua menina-princesa. Juntos mudarão o tamanho do Mundo e o destino desta história para se conseguirem reencontrar.
- Devia ficar por aqui. Apetece-me destruir todas estas grutas e tentar cavalgar nas costas deste dragão.
Os cavaleiros de Hannibas chegaram às margens junto aos lagos de Wawaghan. Começam a montar o acampamento e preparam a sua chegada. A grande mãe-montanha irá continuar a guardá-lo até que o futuro rei serpente encontre a parte mais importante da sua história.


10 de Janeiro de 2012

Ouvir passar o tempo.
Lentamente, corta os pedaços da existência ao ritmo compassado e seguro dos elementos.
O tempo não existe, é uma ilusão.
- Aqui escondido no topo da montanha, o tempo espreguiça-se de outra forma e com outra vontade. Nas profundezas do oceano em que viajamos, a sua dimensão é outra, tal como nas grandes planícies por onde serpenteia o Marthiris, ou junto ao sopé das mais sagradas montanhas de Wawaghan onde me aguardam. Tenho muito para ler, imensos caminhos para percorrer, muitas histórias para recordar. Estas estátuas de bronze, pedras cinzeladas em segredo nestes vales gelados, e a ilusão de que o tempo ainda me pertence, são os meus companheiros de viagem. O tio tinha razão. Assim como as suas palavras não pareciam fazer qualquer sentido, assim como a surpresa morava em cada uma das suas frases, tudo nestes dias se conjugou para trazer a luz da compreensão ao que me ensinara. Por debaixo da fina capa que envolve a realidade de todas as histórias, encontra-se gravada a história comum que as unifica. Nenhuma história existe sem segredos, nenhuma viagem acontece sem tempestades tenebrosas, nenhum sonho se constrói sem que nele se semeiem pesadelos e nenhuma pedra é arquivada sem que no final se desintegre em poeira e esquecimento como o próprio rei serpente de Chover. Caminho na companhia dos pássaros. Aqui chegaram estes peregrinos das nuvens para me iluminarem a jornada. Desenham nos ares gelados círculos perfeitos, quase infinitos. A sua presença tranquiliza-me enquanto leio as pedras e as histórias que arquivam. Este vale gelado assumiu a proporção do maior de todos os desertos. Caminho sem me alimentar e sem saber onde conseguirei obter mantimento. As forças começam-me a abandonar. Gostava de ser corajoso, da abandonar esta paisagem e fazer companhia aos pássaros que continuam a riscar círculos perfeitos nos céus gelados de Wawaghan. Larniki sabe como contar as grandes histórias. Sabe adocicá-las, sabe semear as dúvidas e sabe alimentar a curiosidade a quem as ensina. O rosto sorridente do contador de histórias voltou para me acalmar. Não tenho fome, não sinto as minhas pernas, não sinto os braços cansados, não sinto as minhas asas e não as consigo bater, não sinto o corpo, não sinto o bater do coração, os meus olhos fecham-se, a minha voz desliga-se, as luzes das estrelas do céu de Chover desligam-se, os pássaros peregrinos desaparecem, o tempo não existe, é uma ilusão.
Hannibas tombou no chão empoeirado do grande vale de Wawaghan. Não leu metade das histórias que aqui se encontram. O cansaço tomou conta do jovem príncipe e o ar rarefeito da montanha cumpriu o seu papel. Histórias sombrias acerca de batalhas sangrentas, de guerreiros e combatentes cruéis, de heróis que se camuflaram no meio de mortos, de lamas e de poeiras, que serviam mentiras e traições em forma de segredos, aparecem no pesadelo do futuro rei serpente de Chover. E um dragão negro invade este descanso forçado. Um gigantesco corpo negro volta a segredar ordens invisíveis, volta a contar mentiras e a avançar camuflado pelo ilimitado poder do nevoeiro. Semeia dúvidas e mais dúvidas ao Hannibas adormecido. Os seus dentes são da cor do sangue, o mesmo sangue que lhe mancha o longo corpo negro da cauda à cabeça, o mesmo sangue com que escreve no chão das batalhas o nome de todos os mortos, o mesmo sangue com que rabisca o nome de Lakis junto ao rosto do príncipe fazendo-o estremecer.


13 de Janeiro de 2012

Hannibas acorda com a visão da cabeça do gigante transformada num vulcão enlouquecido.
O pescoço é agora uma torre que se ergue em direcção ao céu, o enorme focinho é um cone incandescente por onde se vomitam labaredas, lavas e fumos densos que cobrem toda a cordilheira.
O corpo azul de Hannibas encontra-se coberto de cinzas.
Fecha os olhos, ergue os braços em direcção aos céus invocando o poder sagrado da mãe-montanha que tudo protege. Da sua boca saem as palavras da primeira de todas as histórias.
- O tempo não tem fim nem tem início, tal como o Marthiris, a água que o serve, a chuva dedicada, as neves eternas onde renasce e onde cumpre mais uma das etapas. Atravessar os oceanos sem ruído, admirar as multidões e os peregrinos. Saltitar de cume em cume, por eles avançar, neles crescer, reflectir, para finalmente me transformar. E a cinza carregada que o dragão vai expelindo deixará de tapar o céu e de cobrir a montanha. Chegou o momento de perpetuar esta aventura e plantar aqui a raiz deste momento.
O corpo franzino de Hannibas cresceu até alcançar o tamanho grandioso de Wawaghan. As asas invisíveis cresceram muito acima das nuvens, muito para além das fronteiras do império de Chover. O jovem príncipe entendeu a razão primeira da sua existência e o seu coração passou a compreender o verdadeiro poder da marca azul que nele habita. A maior de todas as batalhas vai ter o seu início.
Neste momento, neste lugar improvável, Hannibas enfrentará o poder do dragão. A glória ou o fantasma de todos os esquecimentos esperam por ele no final do combate. As histórias que o fizeram crescer transformaram-no neste guerreiro corajoso que enfrenta despido o poderoso adversário. As histórias e as palavras dessas histórias serão as suas únicas armas.
Os dois adversários continuam a crescer, ganham dimensões que vão para lá das do império, para lá das do continente onde o império se construiu, para lá do planeta onde o continente do império se construiu, para lá do sistema solar onde os irmãos do planeta se reúnem. Os dois adversários ganharam a dimensão quase infinita da galáxia, atravessam os espaços vazios que alimentam as estrelas, os cometas e as próprias galáxias. A primeira fase da batalha vai começar.
O dragão de fogo confunde-se com a cor do vazio que sustenta os espaços entre as galáxias. Hannibas invoca as energias contidas nas lamas iniciais, recorda as palavras do bisavô de todos os tempos, recorda o tempo em que ele foi o bisavô de todos os tempos e em que foi o grão infinitésimo de unidade destruído para dar origem à escrita do primeiro dos poemas. Recorda a primeira palavra da primeira história e um fogo intenso começa a arder no seu peito azul como nessa primeira vez. O corpo do dragão foi atingido violentamente pelo fogo intenso que nasceu no coração do futuro rei serpente e iluminou-se de vermelho. A batalha veste-se das cores do sangue, o universo inteiro veste-se com as cores do sangue, os dois guerreiros cavalgam nos fluxos de energia que foram gerados e tentam antecipar os movimentos e as estratégias para o próximo ataque.
Todo o que agora existe é esta energia vermelha, luminosa e infinita onde estão camuflados os dois guerreiros. A força do dragão foi afectada por este primeiro ataque de Hannibas. As asas invisíveis do herói transportam-no até ao lugar mais afastado destas nuvens de energia onde as poderosas forças do dragão se revigoram. Com um único bater de asas, Hannibas destrói a corrente que alimentava a alma do dragão, torna-o visível e catapulta-o para junto de si. Estão agora frente-a-frente, preparados para a luta corpo-a-corpo, sem estratégias de invisibilidade ou manobras menos dignas.
O dragão hesita um pequeníssimo instante, propositadamente, e Hannibas acredita que pode arriscar mais um ataque ao corpo luminoso do animal. Ao levantar as enormes asas brancas sobre a cabeça do dragão, deixou de o ver, deixou de perceber para onde se deslocara o adversário. A asa direita foi violentamente cortada pela metade com um golpe executado pela cauda escamosa do animal que por pouco não lhe acertou na cabeça. O combate acontece com uma rapidez indescritível, acontece com a mesma rapidez com que as penas que deixaram de pertencer à asa do jovem príncipe se transformaram em velozes cometas de luz, setas de diamantes iluminados que voam em direcção à cabeça do dragão que reage instintivamente e as despedaça com um bafo tão quente como as lamas iniciais.
Hannibas junta nas mãos azuis os restos das setas destruídas, pedaços de asas brancas, com o bafo quente que saiu da boca do animal. Tudo treme, as mãos tremem-lhe, o corpo azul treme, o espaço entre todas as coisas treme, o adversário treme como nunca tremera antes, o tempo treme e tudo o que era luz e energia vermelha transforma-se num silencioso branco infinito.
O infinito passou a ser aqui e agora, nunca o amanhã.
- Entendes agora Hannibas? Reconheces-me? Eu sou a dimensão iluminada onde a primeira de todas as histórias se contou. Sou todos os silêncios e todos os símbolos de que se alimentam os silêncios. Sou o lugar onde irão nascer todas as histórias, a folha onde nascerão todos os sorrisos, todas as lágrimas e as viagens de todos os poemas. Sou parte desta história, tal como tu és parte desta história. As tuas asas são as minhas asas, são as asas de Lakis, de Zaffiris e de Rakis. Maior será a tua glória quanto maior for a tua capacidade de te saberes erguer depois de cada queda. Nasceste no seio de uma família de guerreiros, serás o quarto rei serpente de Chover, rei dos desertos, das montanhas e dos vales, rei dos pântanos, das planícies, dos rios, dos mares e oceanos. Serás o rei dos glaciares escarpados, dos planetas, das galáxias e dos universos e terás de os saber proteger. Serpentearás como o Marthiris, voarás como o mais ágil dos pássaros peregrinos e saberás como transformar todas as histórias.
O infinito passou a ser aqui e agora, nunca o amanhã.
Tudo treme, as mãos tremem-lhe, o corpo azul treme e tudo o que era branco, silencioso e infinito volta de novo a ser o chão empoeirado do grande vale de estátuas de Wawaghan onde Hannibas caiu de cansaço.
Uma terna mão azul toca no seu rosto adormecido, passeia pelas sobrancelhas do jovem príncipe, dança pela sua testa, desliza pela cabeça até aos seus lábios e pescoço.
- Aqui vais encontrar aquela que ainda não conheces, a tua maior amiga, aquela cujo coração te pertence. Aqui vieste como peregrino para me conhecer. Eu sou aquela que a quem os ventos chamam Sheridan, a menina princesa do teu coração.



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