17
de Janeiro de 2012
- Nas colinas os segredos continuam bem guardados e
ainda te faltam leituras muito importantes. És tão jovem, ainda tão jovem, meu
bondoso Hannibas. Não te deixes assustar pelo desconhecido. Usa as tuas asas,
voa no interior da neblina, voa através do cerrado nevoeiro do Marthiris. Voa
na companhia das falésias, voa por cima de todas as muralhas. Recordarás esta
viagem para sempre, recordarás os medos sentidos, os cansaços, as dores e esta
doença vermelha que te ameaça, esta doença negra que te procura marcar e te
sufoca. Coragem Hannibas, sente a força que em ti habita, sobe ao que te falta
percorrer nesta jornada, sobe ao topo da montanha-mãe onde irás fazer parte das
suas cores. Os pássaros peregrinos esperam por ti, tu serás a luz e a sabedoria
dos seus corações. Recordarás aquele que para sempre te deixou, aquele que te
abraçou e entendeu noutro momento. As tuas asas já lhe pertenceram, como antes
a Zaffiris e a Rakis. Carregas às costas essa alegria, essa esperança, essa
coragem, e com elas derrotarás as tempestades mais geladas. Como bailarina vim
oferecer-te esta dança. Com o meu corpo gravar-te-ei para toda a eternidade
esta lembrança, dar-te-ei de beber cada letra, dar-te-ei de comer cada palavra
para que possas com elas semear as histórias mais antigas. As minhas lágrimas
irão acordar-te, como acordam os riachos que galgam as veredas em cascatas. As
tuas asas serão o teu poder, serão as tuas histórias, serão as palavras que o
deus sol aquecerá. Elas te farão chegar até este lugar onde eu habito sempre
que o desejares. Depois da viagem, desta luminosa evidência, conhecerás o lugar
onde as rochas e os cometas se esconderam e reconhecerás o lugar onde eu
habito, meu amor. Terás a vida inteira para me visitar.
Soldados colocam-se frente a frente
No campo de batalha
Símbolos intransponíveis de esperança e coragem
A morte escondida no centro dos combates
O dragão negro avança sorrateiro
Escreve ordens invisíveis nas pedras
Conta mentiras em forma de segredo
Mas a menina princesa acredita no coração do herói
O herói acredita no coração da princesa
Onde a montanha o guarda
Onde o tempo não existe
É apenas ilusão
Aqui chegam os peregrinos das nuvens
Desenham círculos perfeitos
Bailando nos céus gelados de Wawaghan
Onde o tempo não existe
É apenas ilusão
Hannibas acorda
O corpo azul coberto de cinzas
Wawaghan inteira coberta de cinzas
E o tempo
Que não tem fim
Não tem princípio
Que se esquece de acontecer
Acorda com Hannibas
Para enfrentar o poder do dragão
A primeira palavra
De todas as histórias
É recordada
O coração de Hannibas iluminou-se
O fogo intenso que se gerou
Vestiu o universo com as cores do sangue
A batalha com as cores do sangue
Asas poderosas
Correntes luminosas
Infinitas
Confundem-se com a cor do vazio
Com os espaços galácticos sustentados pela cor desse
vazio
Onde o tempo não existe
É apenas ilusão
Mãos azuis brincam com os bafos quentes do dragão
Misturam-no com as setas
Diamantes despedaçados
Pedaços de asas brancas
Indestrutíveis
Tudo treme
A energia vermelha desaparece
Transformada num silencioso branco infinito
Onde o tempo não existe
É apenas ilusão
É neste lugar que eu habito
Meu amor
E terás a vida inteira para me visitar
20
de Janeiro de 2012
A montanha volta a fechar-se.
Os segredos que as pedras arquivam aguardam pelos
peregrinos com sagrada paciência. Afinal, o tempo não existe, é apenas ilusão.
Os sonhos aquecem essa ilusão que veste o tempo. Hannibas recupera os sentidos,
acorda para o que lhe resta da jornada. As asas são novamente visíveis,
enormes. Protegeram o corpo azul do futuro rei-serpente durante o combate e
enquanto o silencioso branco infinito o alimentou. Outra gloriosa etapa se
escreverá assim que o príncipe se levantar e retomar o caminho em direcção ao
topo da mãe-montanha. Os pássaros aguardam Hannibas. A restante viagem será
realizada pelos ares, pairando nas nuvens na companhia das aves peregrinas.
Elas conhecem muitas das histórias que se encontram arquivadas nas pedras da
mãe-montanha e voltam sempre aos locais onde se esconderam.
Na mesa de jogo o chá acabou de ser servido. Tsu Lee
Khan afaga a enorme cabeça do dragão que permanece tranquilo junto às pernas do
Mestre. A suposta criação das gémeas Öllin parece rir-se das criadoras como um
feitiço que se virou contra o próprio feiticeiro. A corrente foi quebrada e
nada mais o une às jogadoras.
Olhos de derrota vertem lágrimas amargas no
aveludado tampo verde da mesa de jogo. Este Benzerinagui acabou apenas para uma
das gémeas. Dos olhos de ambas saem gotas salgadas de quem não consegue
esconder a raiva amarga que lhes vai no coração. Foi este o desfecho ditado
pelos espectadores leitores do Benzerinagui. Assim acabou, precocemente, o
império vitorioso das Öllin. Nas holoesferas espalhadas pelas mais distantes
galáxias se formou o resultado.
Os jogadores desta mesa são fortes, muito mais fortes
do que alguma vez imaginaram as gémeas escritoras. Acabaram por ser vítimas da
sua insensatez.
Não há tempo para despedidas, não há tempo para
palavras, não há tempo.
O topo da mais alta montanha é o destino que se
encontra escrito a castanho quente, perfumado, no rectângulo cor de musgo.
Avançar, antecipar as jogadas dos adversários,
permanecer fiel a este princípio de que as histórias, todas as histórias,
contêm parte importante da primeira. Se assim acontecer, se assim continuar a acontecer,
nada de mal sucederá a Hannibas.
Tenho à minha frente o rectângulo negro, o quinto
cartão rectangular que esconde o sentimento do herói. Os pássaros
acompanham-no. De asas brancas bem abertas, plana por cima do gigantesco
planalto gelado onde as estátuas cor-de-bronze foram semeadas. A fome
desapareceu, a sede e o cansaço desapareceram, as recordações dos instantes
antes do adormecimento desapareceram. As feridas e o medo de falhar também
desapareceram.
O império aguarda pelos feitos nobres do jovem príncipe.
A glória de Hannibas fará com que Chover se revigore, cresça e se torne modelo
para todos os impérios vizinhos. Hannibas só deseja voar, só deseja escutar as
histórias que os seus companheiros de viagem lhe vão contando. Outros heróis
venceram a morte, venceram o firmamento, o rio, as neblinas, os desertos e as
escarpas geladas. Venceram tempestades ciclónicas, distâncias, sombras e até a
solidão.
- Sinto o poder revigorante das palavras. Estes
peregrinos voadores sabem contá-las com a mesma magia de meu tio. Nelas consigo
encontrar muitos dos segredos da minha vida, consigo entender quem sou, quem
ainda não conheci, como sobrevivi, quem me ajudou a crescer e como me
transformei. Enfrentei parte da ira da mãe-montanha, já venci tempestades ciclónicas,
descobri as suas escultoras, venci distâncias e venci as sombras. Assim
aconteceu porque em mim habita esta força imensa, este poder enorme contido na
sagrada marca azul que nos pertence. O amor existe nesta montanha, como o vento
que aqui sopra, se espalha, que vem ter connosco e nos altera. Consegui
recordar o teu rosto, a tua voz e o teu perfume. Esta história devolveu-me os
teus cabelos negros, os teus olhos e o teu sorriso de menina. Transformado que
fui por ti em firmamento, abalo feliz em direcção ao topo da montanha-mãe,
abalo feliz por me teres mostrado este lugar onde habitas, a mim e só a mim,
minha amiga, meu amor. No topo da montanha sei o que irei encontrar. No topo da
montanha passarei a ser o guia e não mais o peregrino seguidor. Deixarei de
avançar sem destino no meio das mentiras, das neblinas, resguardado neste
casulo construído em meu redor.
A palavra bordada no rectângulo negro é a do
sentimento. Ficou branca como as neves eternas do topo da mãe-montanha. Branca
como a coragem, como a luz da página iluminada onde se gravou a primeira das
histórias. Branca como o primeiro poema, como o primeiro sonho, como o primeiro
beijo de amor dos primeiros amantes. Branca como o primeiro de nossos beijos,
como as nossas asas, como o sal que faz vibrar, corajosos, os nossos corações.
Branca como a cor do dragão aliado, do dragão amigo, afável, que respeitou a
coragem do vencedor. Branca como a nuvem que nos guia, como a luz que esconde
na sua brancura todas as cores do firmamento. O meu destino servirá para
recordar a importância dos silêncios, servirá para aprender a escutar e
reaprender a importância de saber ouvir passar o tempo.
O tempo não existe, é uma ilusão.
O tempo molda-nos, tal como o infinito. Passa a ser
o aqui e o agora, nunca o amanhã.
O dragão invisível abandonou a protecção de Tsu Lee
Khan. O mestre não serviu o chá Kalatziki a uma das Öllin assim como ao
jogador-escritor do topo oeste desta mesa.
Negra é a cor do sentimento, vermelhas as cores que
o construíram. Mas Hannibas conseguiu tingir de branco as escamas do dragão.
Conseguiu tingir de branco as letras do sentimento bordadas no rectângulo.
- Benzerinagui, Benzerinagui!
Aguardamos com expectativa as palavras que todos nos
dirão.
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