sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

MOMENTOS DOIS - 29



17 de Janeiro de 2012

- Nas colinas os segredos continuam bem guardados e ainda te faltam leituras muito importantes. És tão jovem, ainda tão jovem, meu bondoso Hannibas. Não te deixes assustar pelo desconhecido. Usa as tuas asas, voa no interior da neblina, voa através do cerrado nevoeiro do Marthiris. Voa na companhia das falésias, voa por cima de todas as muralhas. Recordarás esta viagem para sempre, recordarás os medos sentidos, os cansaços, as dores e esta doença vermelha que te ameaça, esta doença negra que te procura marcar e te sufoca. Coragem Hannibas, sente a força que em ti habita, sobe ao que te falta percorrer nesta jornada, sobe ao topo da montanha-mãe onde irás fazer parte das suas cores. Os pássaros peregrinos esperam por ti, tu serás a luz e a sabedoria dos seus corações. Recordarás aquele que para sempre te deixou, aquele que te abraçou e entendeu noutro momento. As tuas asas já lhe pertenceram, como antes a Zaffiris e a Rakis. Carregas às costas essa alegria, essa esperança, essa coragem, e com elas derrotarás as tempestades mais geladas. Como bailarina vim oferecer-te esta dança. Com o meu corpo gravar-te-ei para toda a eternidade esta lembrança, dar-te-ei de beber cada letra, dar-te-ei de comer cada palavra para que possas com elas semear as histórias mais antigas. As minhas lágrimas irão acordar-te, como acordam os riachos que galgam as veredas em cascatas. As tuas asas serão o teu poder, serão as tuas histórias, serão as palavras que o deus sol aquecerá. Elas te farão chegar até este lugar onde eu habito sempre que o desejares. Depois da viagem, desta luminosa evidência, conhecerás o lugar onde as rochas e os cometas se esconderam e reconhecerás o lugar onde eu habito, meu amor. Terás a vida inteira para me visitar.

Soldados colocam-se frente a frente
No campo de batalha
Símbolos intransponíveis de esperança e coragem
A morte escondida no centro dos combates
O dragão negro avança sorrateiro
Escreve ordens invisíveis nas pedras
Conta mentiras em forma de segredo

Mas a menina princesa acredita no coração do herói
O herói acredita no coração da princesa
Onde a montanha o guarda
Onde o tempo não existe
É apenas ilusão

Aqui chegam os peregrinos das nuvens
Desenham círculos perfeitos
Bailando nos céus gelados de Wawaghan
Onde o tempo não existe
É apenas ilusão

Hannibas acorda
O corpo azul coberto de cinzas
Wawaghan inteira coberta de cinzas
E o tempo
Que não tem fim
Não tem princípio
Que se esquece de acontecer
Acorda com Hannibas
Para enfrentar o poder do dragão

A primeira palavra
De todas as histórias
É recordada

O coração de Hannibas iluminou-se
O fogo intenso que se gerou
Vestiu o universo com as cores do sangue
A batalha com as cores do sangue
Asas poderosas
Correntes luminosas
Infinitas
Confundem-se com a cor do vazio
Com os espaços galácticos sustentados pela cor desse vazio
Onde o tempo não existe
É apenas ilusão

Mãos azuis brincam com os bafos quentes do dragão
Misturam-no com as setas
Diamantes despedaçados
Pedaços de asas brancas
Indestrutíveis


Tudo treme
A energia vermelha desaparece
Transformada num silencioso branco infinito
Onde o tempo não existe
É apenas ilusão

É neste lugar que eu habito
Meu amor
E terás a vida inteira para me visitar



20 de Janeiro de 2012

A montanha volta a fechar-se.
Os segredos que as pedras arquivam aguardam pelos peregrinos com sagrada paciência. Afinal, o tempo não existe, é apenas ilusão. Os sonhos aquecem essa ilusão que veste o tempo. Hannibas recupera os sentidos, acorda para o que lhe resta da jornada. As asas são novamente visíveis, enormes. Protegeram o corpo azul do futuro rei-serpente durante o combate e enquanto o silencioso branco infinito o alimentou. Outra gloriosa etapa se escreverá assim que o príncipe se levantar e retomar o caminho em direcção ao topo da mãe-montanha. Os pássaros aguardam Hannibas. A restante viagem será realizada pelos ares, pairando nas nuvens na companhia das aves peregrinas. Elas conhecem muitas das histórias que se encontram arquivadas nas pedras da mãe-montanha e voltam sempre aos locais onde se esconderam.
Na mesa de jogo o chá acabou de ser servido. Tsu Lee Khan afaga a enorme cabeça do dragão que permanece tranquilo junto às pernas do Mestre. A suposta criação das gémeas Öllin parece rir-se das criadoras como um feitiço que se virou contra o próprio feiticeiro. A corrente foi quebrada e nada mais o une às jogadoras.
Olhos de derrota vertem lágrimas amargas no aveludado tampo verde da mesa de jogo. Este Benzerinagui acabou apenas para uma das gémeas. Dos olhos de ambas saem gotas salgadas de quem não consegue esconder a raiva amarga que lhes vai no coração. Foi este o desfecho ditado pelos espectadores leitores do Benzerinagui. Assim acabou, precocemente, o império vitorioso das Öllin. Nas holoesferas espalhadas pelas mais distantes galáxias se formou o resultado.
Os jogadores desta mesa são fortes, muito mais fortes do que alguma vez imaginaram as gémeas escritoras. Acabaram por ser vítimas da sua insensatez.
Não há tempo para despedidas, não há tempo para palavras, não há tempo.
O topo da mais alta montanha é o destino que se encontra escrito a castanho quente, perfumado, no rectângulo cor de musgo.
Avançar, antecipar as jogadas dos adversários, permanecer fiel a este princípio de que as histórias, todas as histórias, contêm parte importante da primeira. Se assim acontecer, se assim continuar a acontecer, nada de mal sucederá a Hannibas.
Tenho à minha frente o rectângulo negro, o quinto cartão rectangular que esconde o sentimento do herói. Os pássaros acompanham-no. De asas brancas bem abertas, plana por cima do gigantesco planalto gelado onde as estátuas cor-de-bronze foram semeadas. A fome desapareceu, a sede e o cansaço desapareceram, as recordações dos instantes antes do adormecimento desapareceram. As feridas e o medo de falhar também desapareceram.
O império aguarda pelos feitos nobres do jovem príncipe. A glória de Hannibas fará com que Chover se revigore, cresça e se torne modelo para todos os impérios vizinhos. Hannibas só deseja voar, só deseja escutar as histórias que os seus companheiros de viagem lhe vão contando. Outros heróis venceram a morte, venceram o firmamento, o rio, as neblinas, os desertos e as escarpas geladas. Venceram tempestades ciclónicas, distâncias, sombras e até a solidão.
- Sinto o poder revigorante das palavras. Estes peregrinos voadores sabem contá-las com a mesma magia de meu tio. Nelas consigo encontrar muitos dos segredos da minha vida, consigo entender quem sou, quem ainda não conheci, como sobrevivi, quem me ajudou a crescer e como me transformei. Enfrentei parte da ira da mãe-montanha, já venci tempestades ciclónicas, descobri as suas escultoras, venci distâncias e venci as sombras. Assim aconteceu porque em mim habita esta força imensa, este poder enorme contido na sagrada marca azul que nos pertence. O amor existe nesta montanha, como o vento que aqui sopra, se espalha, que vem ter connosco e nos altera. Consegui recordar o teu rosto, a tua voz e o teu perfume. Esta história devolveu-me os teus cabelos negros, os teus olhos e o teu sorriso de menina. Transformado que fui por ti em firmamento, abalo feliz em direcção ao topo da montanha-mãe, abalo feliz por me teres mostrado este lugar onde habitas, a mim e só a mim, minha amiga, meu amor. No topo da montanha sei o que irei encontrar. No topo da montanha passarei a ser o guia e não mais o peregrino seguidor. Deixarei de avançar sem destino no meio das mentiras, das neblinas, resguardado neste casulo construído em meu redor.
A palavra bordada no rectângulo negro é a do sentimento. Ficou branca como as neves eternas do topo da mãe-montanha. Branca como a coragem, como a luz da página iluminada onde se gravou a primeira das histórias. Branca como o primeiro poema, como o primeiro sonho, como o primeiro beijo de amor dos primeiros amantes. Branca como o primeiro de nossos beijos, como as nossas asas, como o sal que faz vibrar, corajosos, os nossos corações. Branca como a cor do dragão aliado, do dragão amigo, afável, que respeitou a coragem do vencedor. Branca como a nuvem que nos guia, como a luz que esconde na sua brancura todas as cores do firmamento. O meu destino servirá para recordar a importância dos silêncios, servirá para aprender a escutar e reaprender a importância de saber ouvir passar o tempo.
O tempo não existe, é uma ilusão.
O tempo molda-nos, tal como o infinito. Passa a ser o aqui e o agora, nunca o amanhã.
O dragão invisível abandonou a protecção de Tsu Lee Khan. O mestre não serviu o chá Kalatziki a uma das Öllin assim como ao jogador-escritor do topo oeste desta mesa.
Negra é a cor do sentimento, vermelhas as cores que o construíram. Mas Hannibas conseguiu tingir de branco as escamas do dragão. Conseguiu tingir de branco as letras do sentimento bordadas no rectângulo.
- Benzerinagui, Benzerinagui!
Aguardamos com expectativa as palavras que todos nos dirão.

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