5
de Janeiro de 2012
Não partilharei todas as histórias. Muitas delas
serão apenas minhas recordações.
As pedras são tão poderosas como as histórias que as
construíram. As pedras tornam-nos grandes, dão-nos a correcta dimensão do que
valemos.
Trago os pés tão gelados que não já não os sinto e
estou quase cego com a brancura que veste a mãe montanha. As sombras permanecem
coladas a mim desde que iniciámos a subida. Deixei-as para trás quando me
aventurei, através dos meus voos, pelos cumes mais altos da cordilheira. Escutam-se
as palavras do vento, das avalanches e dos corajosos pássaros que se atrevem a voar
até aqui.
Não me recordo de como aqui cheguei.
Tento encontrar os tesouros escondidos nas grutas
camufladas pela neve e pelo gelo. As primeiras histórias acalmam-me,
aquecem-me, revelam os primeiros aventureiros, as primeiras batalhas e as
primeiras de todas as viagens. As palavras foram construídas em estranhas
línguas, ensinadas pelas próprias pedras que as arquivaram.
Aqui não existem vozes, não existe medo nem maldade,
não existe o mesmo tempo que no vale e nas planícies se espreguiça, não existe
fome, não existe sede, não existe vontade em ser gigante nem receio em perder
de vista a razão porque iniciei esta viagem.
Mais uma vez o tempo parou. Os olhares das vítimas
das histórias atraiçoam-me a memória e são tantas a encher estas paisagens.
Muitos peregrinos, como eu, voaram por cima dos mais
altos picos de Wawaghan e aqui vieram pagar suas promessas.
Um sentimento genuíno de alegria percorre o meu
corpo azul e ilumina as minhas asas.
Conseguirei permanecer sincero, viver de acordo com
os mais puros princípios da existência, respeitar quem fui, quem sou e quem
serei?
Aprendi a dominar o tempo desde que adquiri a pele
azul. A noite gelada da montanha proporciona a tranquilidade necessária para a
tarefa da leitura. Demoraria séculos para conseguir ler as pedras todas desta
gruta onde me encontro e assim conseguirei realizar a função sem desperdício de
tempo. E ainda tenho tantas grutas para visitar, tantas lagoas e tantos
glaciares para descobrir, e milhares de milhões de pedras e de histórias para
decifrar, interpretar, decorar e aprender. Mudarei com cada palavra de cada
história e aceitarei humildemente essas transformações. Por isso parei o tempo
para poder ler as histórias arquivadas nestas pedras.
A montanha escondeu os mais devastadores ciclones em
grutas semelhantes às das pedras que vou lendo. Esses ciclones não são mais do
que brinquedos que rodopiam nas palmas das mãos de delicadas meninas-princesa
que nelas habitam. Quarenta dessas grutas estão próximas desta onde me
encontro. De todas elas saem autênticas obras-primas, verdadeiramente
destruidoras, que se espalham como flores de lótus pelas íngremes encostas de
Wawaghan ajudando-a a crescer.
Os quarenta ciclones saídos dessas grutas vieram-me
visitar. Contaram-me muitos segredos sobre aquelas que os construíram assim tão
belos, tão perfeitos e poderosos. Quis saber de que cor é o coração de cada uma
dessas princesas escultoras.
Novamente chegam palavras de Larniki para me
enfeitiçar a memória, dando-me conta daquilo que já aprendi.
Durante a noite respiramos melhor, na companhia das
sombras, e recordamos a mãe montanha onde nascemos. Honras imortais estão
arquivadas nestas histórias e nenhuma tempestade as conseguirá derrotar. Os
dias e as noites são nossos aliados, as estações do ano já são nossas aliadas,
tal como as pedras e a montanha.
Resta-me saber onde encontrar a mais importante de
todas as aliadas, aquela que é capaz de brincar com o tempo e que constrói o
mais violento dos ciclones como se fosse um brinquedo colorido a rodopiar feliz
na palma de sua mão.
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de Janeiro de 2012
Nesta gelada dimensão da grande mãe montanha, os
ciclones varreram todos os cristais de neve e deixaram à vista um imenso
planalto que foi cinzelado, por milénios, pelos maiores glaciares de Wawaghan.
A paisagem é sublime e não se encontram palavras, em nenhuma história de
nenhuma pedra, capazes de a descrever. A cor desta terra é igual à do bronze
mais nobre. Esculturas surreais de rocha maciça encontram-se semeadas ao longo
destes vales gigantescos e nos seus declives dando a sensação de me encontrar num
planeta distante, bem diferente de tudo o que meus olhos estavam preparados
para observar. Estas esculturas foram trabalhadas pelas forças ímpares que
saíram das mãos das meninas-princesa.
Esta paisagem rara faz-me agora companhia.
Depois dos muitos anos em que estes quarenta
ciclones se entretiveram a apurar as rochas do vale, depois de muitos outros em
que acalmaram essa vontade, desapareceram, subitamente, num breve instante.
O silêncio colou-se aos lugares e aos espaços entre
os lugares.
O silêncio colou-se aos perfumes, colou-se ao frio
intenso que congela o próprio tempo e colou-se à luz azul que o ilumina.
Resolvi descer, desta gruta, até esse lugar
abençoado, pedaço de lua no reino de Chover. Sinto-me como se caminhasse nesse
astro distante que nos ornamenta as noites e nos faz sonhar.
Uma poeira finíssima cola-se aos pés. Deixo atrás de
mim um trilho fácil de seguir. As gigantescas estátuas de pedra, de tamanhos e
formas desiguais, foram semeadas por Wawaghan para serem trabalhadas pelos
ciclones das meninas princesas.
As sombras que me perseguiam não conseguem chegar
até este lugar. Fiz questão em deixar para trás os meus irmãos pois esta parte
da história não pode ser partilhada. Os nossos destinos são distintos e eu levei
muito a sério as palavras da senhora minha mãe.
Aqui encontrarei o meu destino nos olhos de uma
princesa.
Quarenta irmãs continuam escondidas nas suas grutas,
resguardadas pelos túneis que foram construídos no interior da montanha
sagrada. Ali se entretiveram, durante séculos, a esculpir as rochas cor de
bronze de Wawaghan. Terei de ler as suas histórias, uma a uma.
Terei de beber todas as palavras, decifrar os
enigmas e adivinhar todos os enredos.
A minha história continuará neste vale de estátuas
gigantes.
Aqui permanecerei. Serei visitado por pássaros
peregrinos.
Relembrar-me-ão que devo manter acesa a nobre chama
da virtude.
Relembrar-me-ão que a felicidade reside em dar
cumprimento às promessas.
Relembrar-me-ão que a felicidade está em fazer
perpetuar as histórias que aqui me forem transmitidas.
A sua missão é a de me ajudarem a recordar a
primeira história, pois esses pássaros são a própria liberdade a dançar neste
céus perfeitos e são capazes de tudo para perpetuar estas histórias.
Numa destas esculturas encontrarei a parte mais
importante da minha história e nesse momento voltarei a soltar as amarras do
tempo que domestiquei.
Foram muitos os capítulos sem poemas
Gastas que foram as palavras
Engolidas pelos anos
Pelos séculos que demoraram
A fazê-las renascer
Cansados
Os poemas adormeceram
Como Argenta
Avisaram Hannibas do seu destino
Das sombras que o perseguem
Da princesa que terá de conhecer
No centro da escuridão
Onde viaja
Encontrar o caminho
Vencer perigos
Tempestades
Atravessar desertos
Caminhar por cima de chamas
Viajar por séculos e séculos
Derrubar muros
Partir escuras vidraças
Abrir portas de par em par
Deixar de olhar para as mãos azuis
Sujas de sangue
Ao fugir dos irmãos que o acompanham
Hannibas abraçou a madrugada
Voou escondido na escuridão
Saltou direito ao abismo
Sem saber se conseguiria abrir asas
E voar
Em Wawaghan
Escutam-se as palavras do vento
Das avalanches
Dos pássaros solitários
Escutam-se as histórias
Contadas pelas pedras onde se arquivam
Em Wawaghan
O tempo parou
E Hannibas leu todas as pedras
Em Wawaghan
Nascem ciclones
Em grutas escondidas
Fazendo-a crescer
Em Wawaghan
Os ciclones visitam Hannibas
Esculpem as rochas cor de bronze
Nos planaltos escondidos
No topo da montanha mãe
Quarenta meninas princesa
Fizeram nascer os ciclones
Que esculpiram um pedaço de lua
Nas terras mais geladas de Chover
No vale das estátuas gigantes
Hannibas lerá todas as histórias
Na companhia dos pássaros peregrinos
Recordará a primeira história
Dançará livre nos céus perfeitos
Encontrará a parte mais importante da sua história
E nesse momento
Apenas nesse momento
Soltará as amarras do tempo
Que domesticou
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