sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

MOMENTOS DOIS - 27




5 de Janeiro de 2012

Não partilharei todas as histórias. Muitas delas serão apenas minhas recordações.
As pedras são tão poderosas como as histórias que as construíram. As pedras tornam-nos grandes, dão-nos a correcta dimensão do que valemos.
Trago os pés tão gelados que não já não os sinto e estou quase cego com a brancura que veste a mãe montanha. As sombras permanecem coladas a mim desde que iniciámos a subida. Deixei-as para trás quando me aventurei, através dos meus voos, pelos cumes mais altos da cordilheira. Escutam-se as palavras do vento, das avalanches e dos corajosos pássaros que se atrevem a voar até aqui.
Não me recordo de como aqui cheguei.
Tento encontrar os tesouros escondidos nas grutas camufladas pela neve e pelo gelo. As primeiras histórias acalmam-me, aquecem-me, revelam os primeiros aventureiros, as primeiras batalhas e as primeiras de todas as viagens. As palavras foram construídas em estranhas línguas, ensinadas pelas próprias pedras que as arquivaram.
Aqui não existem vozes, não existe medo nem maldade, não existe o mesmo tempo que no vale e nas planícies se espreguiça, não existe fome, não existe sede, não existe vontade em ser gigante nem receio em perder de vista a razão porque iniciei esta viagem.
Mais uma vez o tempo parou. Os olhares das vítimas das histórias atraiçoam-me a memória e são tantas a encher estas paisagens.
Muitos peregrinos, como eu, voaram por cima dos mais altos picos de Wawaghan e aqui vieram pagar suas promessas.
Um sentimento genuíno de alegria percorre o meu corpo azul e ilumina as minhas asas.
Conseguirei permanecer sincero, viver de acordo com os mais puros princípios da existência, respeitar quem fui, quem sou e quem serei?
Aprendi a dominar o tempo desde que adquiri a pele azul. A noite gelada da montanha proporciona a tranquilidade necessária para a tarefa da leitura. Demoraria séculos para conseguir ler as pedras todas desta gruta onde me encontro e assim conseguirei realizar a função sem desperdício de tempo. E ainda tenho tantas grutas para visitar, tantas lagoas e tantos glaciares para descobrir, e milhares de milhões de pedras e de histórias para decifrar, interpretar, decorar e aprender. Mudarei com cada palavra de cada história e aceitarei humildemente essas transformações. Por isso parei o tempo para poder ler as histórias arquivadas nestas pedras.
A montanha escondeu os mais devastadores ciclones em grutas semelhantes às das pedras que vou lendo. Esses ciclones não são mais do que brinquedos que rodopiam nas palmas das mãos de delicadas meninas-princesa que nelas habitam. Quarenta dessas grutas estão próximas desta onde me encontro. De todas elas saem autênticas obras-primas, verdadeiramente destruidoras, que se espalham como flores de lótus pelas íngremes encostas de Wawaghan ajudando-a a crescer.
Os quarenta ciclones saídos dessas grutas vieram-me visitar. Contaram-me muitos segredos sobre aquelas que os construíram assim tão belos, tão perfeitos e poderosos. Quis saber de que cor é o coração de cada uma dessas princesas escultoras.
Novamente chegam palavras de Larniki para me enfeitiçar a memória, dando-me conta daquilo que já aprendi.
Durante a noite respiramos melhor, na companhia das sombras, e recordamos a mãe montanha onde nascemos. Honras imortais estão arquivadas nestas histórias e nenhuma tempestade as conseguirá derrotar. Os dias e as noites são nossos aliados, as estações do ano já são nossas aliadas, tal como as pedras e a montanha.
Resta-me saber onde encontrar a mais importante de todas as aliadas, aquela que é capaz de brincar com o tempo e que constrói o mais violento dos ciclones como se fosse um brinquedo colorido a rodopiar feliz na palma de sua mão.


6 de Janeiro de 2012

Nesta gelada dimensão da grande mãe montanha, os ciclones varreram todos os cristais de neve e deixaram à vista um imenso planalto que foi cinzelado, por milénios, pelos maiores glaciares de Wawaghan. A paisagem é sublime e não se encontram palavras, em nenhuma história de nenhuma pedra, capazes de a descrever. A cor desta terra é igual à do bronze mais nobre. Esculturas surreais de rocha maciça encontram-se semeadas ao longo destes vales gigantescos e nos seus declives dando a sensação de me encontrar num planeta distante, bem diferente de tudo o que meus olhos estavam preparados para observar. Estas esculturas foram trabalhadas pelas forças ímpares que saíram das mãos das meninas-princesa.
Esta paisagem rara faz-me agora companhia.
Depois dos muitos anos em que estes quarenta ciclones se entretiveram a apurar as rochas do vale, depois de muitos outros em que acalmaram essa vontade, desapareceram, subitamente, num breve instante.
O silêncio colou-se aos lugares e aos espaços entre os lugares.
O silêncio colou-se aos perfumes, colou-se ao frio intenso que congela o próprio tempo e colou-se à luz azul que o ilumina.
Resolvi descer, desta gruta, até esse lugar abençoado, pedaço de lua no reino de Chover. Sinto-me como se caminhasse nesse astro distante que nos ornamenta as noites e nos faz sonhar.
Uma poeira finíssima cola-se aos pés. Deixo atrás de mim um trilho fácil de seguir. As gigantescas estátuas de pedra, de tamanhos e formas desiguais, foram semeadas por Wawaghan para serem trabalhadas pelos ciclones das meninas princesas.
As sombras que me perseguiam não conseguem chegar até este lugar. Fiz questão em deixar para trás os meus irmãos pois esta parte da história não pode ser partilhada. Os nossos destinos são distintos e eu levei muito a sério as palavras da senhora minha mãe.
Aqui encontrarei o meu destino nos olhos de uma princesa.
Quarenta irmãs continuam escondidas nas suas grutas, resguardadas pelos túneis que foram construídos no interior da montanha sagrada. Ali se entretiveram, durante séculos, a esculpir as rochas cor de bronze de Wawaghan. Terei de ler as suas histórias, uma a uma.
Terei de beber todas as palavras, decifrar os enigmas e adivinhar todos os enredos.
A minha história continuará neste vale de estátuas gigantes.
Aqui permanecerei. Serei visitado por pássaros peregrinos.
Relembrar-me-ão que devo manter acesa a nobre chama da virtude.
Relembrar-me-ão que a felicidade reside em dar cumprimento às promessas.
Relembrar-me-ão que a felicidade está em fazer perpetuar as histórias que aqui me forem transmitidas.
A sua missão é a de me ajudarem a recordar a primeira história, pois esses pássaros são a própria liberdade a dançar neste céus perfeitos e são capazes de tudo para perpetuar estas histórias.
Numa destas esculturas encontrarei a parte mais importante da minha história e nesse momento voltarei a soltar as amarras do tempo que domestiquei.

Foram muitos os capítulos sem poemas
Gastas que foram as palavras
Engolidas pelos anos
Pelos séculos que demoraram
A fazê-las renascer

Cansados
Os poemas adormeceram
Como Argenta
Avisaram Hannibas do seu destino
Das sombras que o perseguem
Da princesa que terá de conhecer
No centro da escuridão
Onde viaja

Encontrar o caminho
Vencer perigos
Tempestades
Atravessar desertos
Caminhar por cima de chamas
Viajar por séculos e séculos

Derrubar muros
Partir escuras vidraças
Abrir portas de par em par
Deixar de olhar para as mãos azuis
Sujas de sangue

Ao fugir dos irmãos que o acompanham
Hannibas abraçou a madrugada
Voou escondido na escuridão
Saltou direito ao abismo
Sem saber se conseguiria abrir asas
E voar

Em Wawaghan
Escutam-se as palavras do vento
Das avalanches
Dos pássaros solitários
Escutam-se as histórias
Contadas pelas pedras onde se arquivam

Em Wawaghan
O tempo parou
E Hannibas leu todas as pedras

Em Wawaghan
Nascem ciclones
Em grutas escondidas
Fazendo-a crescer

Em Wawaghan
Os ciclones visitam Hannibas
Esculpem as rochas cor de bronze
Nos planaltos escondidos
No topo da montanha mãe

Quarenta meninas princesa
Fizeram nascer os ciclones
Que esculpiram um pedaço de lua
Nas terras mais geladas de Chover

No vale das estátuas gigantes
Hannibas lerá todas as histórias
Na companhia dos pássaros peregrinos
Recordará a primeira história
Dançará livre nos céus perfeitos
Encontrará a parte mais importante da sua história

E nesse momento
Apenas nesse momento
Soltará as amarras do tempo
Que domesticou

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